Hoje as
cidades à beira mar não permitem mais, mas até 30, 40 anos atrás, lá, daqueles
bairros onde o Judas perdeu as botas, os famosos "Jardins" - jardim
isso, jardim aquilo -, nos domingos de madrugada saiam centenas de ônibus em
direção ao litoral sul de São Paulo, em busca das praias, principalmente à
Praia Grande, então semi-deserta e limitada entre o mar e o mangue. Aqueles
eram tempos felizes, dos piqueniques bolados pelos times de futebol de várzea
ou pelas Sociedades Amigos dos Bairros, organizações abnegadas e politicamente
inocentes.
Felipetas,
faixas, foulders, boca-a-boca; nos bairros não se falava em outra coisa:
-
"cê' vai? No úrtimo cê' num foi!"
-
"... tava durango kid, malandro! Meu 'borso tava' gritando de fome, minha
cartêra tava cheia de teia de aranha...mas esse ano eu 'vô', craro; maloquei
uma grana, todo dinheirinho que sobra 'dô' prá minha mãe guardá... a véia num é
mole, é mão de vaaaaaca!..."
Outros
eventos estavam sendo programados: batucada, cantoria, churrasco comunitário,
bar (pinga com groselha, caipirinhas, meias-de-seda, batidas, cerveja, guaraná,
salgadinhos, ovos cozidos e a maravilha das maravilhas: frango assado estufado,
quase explodindo, com farofa apimentada...) e o indefectível jogo de futebol na
areia, que a rapaziada precisava se mostrar prás "minas, prás
bizutinhas", numa espécie de dança de acasalamento; muitos namoros, muitos
noivados e casamentos tiveram esses piqueniques como ponto de partida ou como
ponto de ruptura; muita briga, muito choro, muitas decepções - "juro por
Deus! Nunca imaginei que o Joãozinho jogasse as tranças, cruz credo!" -,
muita bebedeira:
-
"Comadre, leva o compadre prá sombra, num deixa ele dormir no sór que pode
dar um derrame e ele ficá 'ca' boca torta, ca perna bamba e com mão de
gengibre... (...'magina, 9 e meia da manhã e o compadre já bebeu qui nem uma
vaca...num vai nem 'proveitá a praia!')"
Pelo
menos duas vezes por ano, praticamente, uma parte dos moradores do bairro
descia a serra em direção ao mar, era de lei, tradição firmada; D. Jandira,
esposa do presidente da Associação Amigos do Bairro do Jardim Paraopeba Mirim,
se encarregava de reunir-se com as donas de casa para acertar detalhes do
convescote (D. Jandira achava a palavra 'convescote' mais chic que
'piquenique'), acertar a logística - era uma honra enorme participar dessas
reuniões, assunto para semanas seguidas na feira, nas casas, nas vendinhas,
fofocas mil. Normalmente as reuniões eram marcadas com as mulheres na saída da
missa das 10, missa rezada na capela de Nossa Senhora do Bom Parto, sob o
beneplácito do Padre Zezinho, garotão recém saído do seminário, amor sonhado
pelas mais afoitas - aliás a santidade e celibato do padre não duraram muito,
acabou abandonando a batina e se amigou com uma das fiéis que, à boca pequena,
dizia-se ter fogo no rabo desde sempre , fosse lá o que fosse ou isso
significasse, mas essa história escandalosa são outros 500 mil réis, vai ficar
prá outra ocasião.
Dois
meses antes da data marcada para o "invento" - era assim que alguns
pronunciavam a palavra 'evento' - as providências começavam a ser aceleradas:
confirmação dos lugares vendidos, aluguel dos ônibus, aluguel de kombis para
levar a parafernália de boteco, que a Associação precisava fazer dinheiro: a
chapa, o fogareiro Primus, as garrafas de cachaça, o saco com limão galego, o açúcar,
o vermute, a groselha, os copos plásticos, as barras de gelo em caixotes
cobertos com serragem, os trempes para o churrasco, os cavaletes prá montar o
'barcão', os engradados de cerveja, tubaina, a lona de caminhão prá improvisar
uma barraca...
Chegados
da 'trampa', antes de irem cada um prá sua casa, os homens se reuniam nos bares
prá molhar as palavras:
-
"...precisa de ver quem vai jogar no nosso 'gôr' nesse piquenique; no
'úrtimo' casado e 'sortêro' o Varte tomou uns frangão nervoso"...
- "O
Varte casô e engordô, ficô lento, num consegue ir nas bola"...
- A sorte
é que o 'gortipa' dos sortêro tamém' num era lá aquelas coisa'...
-
"É... mas num tem graça um jogo tão bêsta, os 'gortipa' 'ingulindo' frango
toda hora... mas é "bão ansim" porque a gente num ganhemo mas tamém
num perdemo: a gente empatemo!..."
-
"Então vai 'sê' a 'nêga'..., güenta malandrage, quem pudé mais vai chorá
menos!".
"MADRUGADA
DE DOMINGO"
Finalmente
chegou o dia. A praça em frente à capela está lotada de gente com sacolas,
carrinhos de feira, som de rádios de pilha, programa do Zé Betio, modas de
viola, batuque, o repinique chamando o samba. Faz frio, garoa um pouco...
- “Que
porcaria, né”? Fez sór todos esses dias, justo hoje amanhece desse jeito...
-
"...diz que quando chove aqui, tem sór lá em baixo! ...'cê vai vê... é só
passá o sigundo túner que abre o sór..."
-
..."sei não... vamvê, né?... 'E essIs buzo qui num chega"...
-
..."diz que vai saí às 5... ainda é 4... tem tempo"...
Naquela
madrugada os botecos e a única padaria do bairro não fecharam as portas, muita
gente nem dormiu, ficou em casa zumbizando, vendo televisão, ouvindo radio, a
esposa enchendo o saco do marido, o marido aporrinhando a esposa...
De
repente fogos, salva de rojões na madrugada, buzinas de muitos ônibus chegando
no largo da igreja, gritos de alegria, avisos aos berros:
"Corre,
segura as criança, fica de olho nelas... Espera os ônibus 'pará'... eu quero ir
na janelinha...", não faltavam as recomendações das mães e dos pais...
" Eu
gosto de ficá na janela prá vê os 'principicio" na Anchieta..."
"Eu
num óio, eu fecho ozóio! Dá um frio na barriga!"..
O SEGUNDO
TÚNEL
O
'especialista' em meteorologia tinha razão e acertou em sua previsão Na saída
do segundo túnel o tempo abriu e, lá do alto, a Baixada Santista se descortinou
por inteiro: "'Alá' o mar, pessoar. Tem sór lá embaixo..., vai dar prá
sargá o batebuzú..."
-
"Óia os palavrão, Mané... tem criança no ônibus!"...
-
"Discurpa pessoar... Num tá mais aqui quem falô!"
-
"Num tá mais? Óia ocê aí! Si joga pela janela, Mané"...
-
"Si joga ocê"...
PRAIA
GRANDE
Dezenas
de ônibus estacionados lado a lado, o mar em frente, crianças desesperadas para
entrar n'água, mergulhar, furar as ondas:
-
"Cuidado, cuidado! Vai junto 'cas criança'! 'Num vão pro fundão"!
-
"...cê já viu a cor do mar? Um verde meio azulado... bonito, né? Dá
vontade de mergulhar, mas não vai dar,.".
- Veio
"procê"?
- Veio e
ainda bem que veio...
- Ahn,
sei...
O dia
transcorreu normalmente na praia, se é que se pode chamar de normal um dia com
briga de namorados, casos de insolação, falta de banheiros (que resultaram num
entra- e- sai intenso do mato), crianças perdidas, arrombamento de ônibus e,
consequentemente, objetos e roupas desaparecidos, briga de marmanjos na mão e,
coroando tudo, a cereja do bolo, 3 afogamentos, com dois corpos desaparecidos,
levados pelas correntes...
- Sabe
quando vão achá esses difunto? NUNCA!
-
..."é como eu digo: o mar é perigoso, num pode abusá; os cara enche bem o
bucho de rango e cachaça, entra no mar, dá uma 'digestão', uma crâimba, e acaba
dançando ca mais feia"...
- Ainda
bem que "dero por farta na hora de vortá prá vila, sinão tinha istragado o
dia"...
- Diz que
o Bira é um dos 'fogado', coitado...
-
"Os pessoar da Associação é que vai tê de ficá prá resorvê os
pobrema"...
-
"Num quero nem sabê! Êles que são branco que se entenda"...
Na subida
da serra, silêncio nos ônibus. Alguém olhando pela janela vê as luzes da
Baixada e pensa lá com seus botões: "Quando sair o 13º, num vô falá nada
prá ninguém, pego a grana, desço prá baixo, dô entrada num terreno na Praia
Grande, encosto o material aos poucos e vou fazendo minha casinha...
A chegada
foi em silêncio, quase 11 da noite:
- Agora só
o outro, comadre... morreu gente, mas eu me diverti...chegá em casa, tomá um
banhão e vamo prá caminha que amanhã é dia de preto!...
CASADOS X
SOLTEIROS NO FUTEBOL
Num
ganharo nem perdero, empataro!...
p/
Joaquim Ignacio
7 comentários:
Muito boa, Ignácio!
Iscritu comu si fala! Cus êrro i tudu!
História perfeita, com todos os preparativos, ansiedades, até mesmo os fogos na chegada dos ônibus, anunciando pra todo mundo - até pra quem não ia e queria dormir até mais tarde naquele domingão garoento! - o início do "invento"!
Na minha adolescência, eu participava ativamente da igreja do meu bairro e sempre ajudei na preparação desse tipo de "invento". Mas minha mãe não me deixava ir, para minha infelicidade. Ficava só aguardando a volta do pessoal pra saber tudinho o que tinha acontecido... e era bem isso que você relatou, com riqueza de detalhes. Não ter participado dessas festanças foi uma das minhas frustrações juvenís, que jamais poderão ser resolvidas...
Abração.
Ignacio, vai iscrever mar anssim nu otro lado da rua...
Esse texto mostra, mais uma vez, toda a sua engenhosa criação.
Achei maravilhoso e muito bem adequado às condições desses iventos das antigas.
Ignacio, gostoso recordar os tempos da praia. Certa vez fui com um grupo de professores fazer um bate e volta. Dei um trabalho para todos quando comi camarão e tive que ir para o pronto socorro. Parabéns, adorei seu texto. Um beijo.
Ignacio, que gostoso ler esse seu texto, durante a leitura do mesmo senti um desejo enorme que ele jamais acabasse, e como um livro de 300 paginas eu pudesse ficar lendo o mesmo no minimo umas 24 horas. Parabéns.
Ignacio, parabéns pelo texto, é uma fotografia sem retoques de um verdadeiro piquenique na praia, abraços, Leonello Tesser (Nelinho).-
Divertido passeio, Ignácio, vc nos leva a praia, enfrentando todas as dificuldades e nós, na poltrona, a tudo assistimos, gostosamente. Parabéns, Ignácio.
Modesto
JOCA: Como dizia a grande Maria Theresa: "Bello, num mi faiz rí, qui mi dói u denti"!
Axu qui vuçe andô mi ispiandu nus piquiniqui qui io mi fui nas praia grandi. Ahahahahahaaaaaaaaaaaaa!
Nói sufria, quasi morria di insolaçon nas, nu próximo meis nóis ia di novo!
Nóis sofria, mai nóis gustava!
Amei o teu texto!
Abração,
Natale
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