(A hora e a vez das feministas)
Boyada: – Bando, agrupamento de Office-boys (risos).
Fui um adolescente paulistano em plena Ditadura!
Ah! Os anos 60... Foi assim: Juscelino deixou a Presidência do Brasil
ainda em clima de festa. Secou os cofres públicos, mas nos legou Brasília, a
nova Capital Federal. A “Corte” saiu do Rio de Janeiro e mudou-se, mui a
contragosto, para o Planalto Central. E o Rio de Janeiro - Distrito Federal -
virou Estado da Guanabara.
Pois bem: Saiu o “Jusça”, ainda no “porre” da inauguração da “Novacap” e
em seguida, subiu a rampa o Jânio Quadros, o homem que pretendia nos governar
por “bilhetinhos” e de uma forma absoluta, ditatorial e paternalista. E o homem
fez das suas no poder. Até condecorou o Cheguevara! E isso deu o que falar...
Isso e a situação do Brasil fizeram com que as Forças Armadas começassem a se
articular. Então, qual criança mimada e petulante, o Jânio resolveu renunciar,
achando que “logo voltaria nos braços do povo”. Não voltou!... Ahahahaa!
Assumiu o seu Vice, o João Goulart. Ai, a coisa degringolou de vez. Suas
medidas salvacionistas e populistas (que uns diziam socialistas e, outros,
comunistas) acabaram por levar o país à Revolução de 64. O bom do governo
“Jango” foi Maria Theresa Goulart – a Primeira-dama mais “gostosa” que o Brasil
já teve desde Nair de Teffé (Anos 10. Esposa de Hermes da Fonseca). E viva a
Ditadura! Mas não por muito tempo. O “namoro” durou pouco...
Nos anos 60, a boyada “estourava” pelo Centro da Cidade,
rumo aos seus compromissos e, no corre-corre, atropelava os transeuntes. Com os
“milicos no poder”, transitar pelo centro de São Paulo era um misto de terror e
prazer, êxtase e agonia. E sustos! Assalto a bancos, invasão do Martinelli que
estava se transformando em um cortição vertical, onde os milicos acreditavam
que havia “células” e terroristas (Puro mito.); suspeitas de bombas nos bancos
e órgãos públicos. Os terroristas roubavam, matavam e morriam. E os
sequestros?! Era o terror ganhado espaço na cidade.
Mas, um Office-boy era acima de tudo um otimista. “Borravam-se” de medo,
mas se divertiam muito. E os boys transformavam a pichação “Abaixo a Ditadura”
em “Abaixo a Dentadura” e “Abaixo a ‘Dita’ Dura”... Não! A ‘dita’ dura, não
mesmo! Tem que continuar dura!
E havia repressão por toda parte. E passeatas. Passeata da turma do TFP,
pedindo assinaturas contra todos e contra tudo. Estudantadas políticas,
conflitos. Enfim, reprimia-se tudo, rebelava-se contra tudo. E estavam na moda
os cassetetes de borracha – a grande estrela urbana do período!
A Cidade sufocada, quase em Estado de Sitio, voltou a uma normalidade
incerta. Os “reaças” ainda faziam das suas; as greves se intensificaram e
muitas, muitas passeatas relâmpago. Reação e Situação ainda se
enfrentavam. O governo então “endureceu”...
A turma da Ordem Política e Social mantinha o povo sob controle, tanto
que a cidade deu uma aquietada. Mas, para não cair na ociosidade e perder “a
mão”, o DOPS inventou mil e uma maneiras de repressão. Veio então, a
“Moralizadora”. Começaram por vigiar a “Boca do Lixo”, os puteiros femininos e
gays de Santa Efigênia e Campos Elíseos. Mas, não bastava: eles foram atrás das
“meninas de luxo” que “trabalhavam” em boates do tipo “La Ronde” e “Michel”;
perseguiram as prostitutas que “faziam a vida” pelas ruas; as lésbicas do
Ferro’s Bar e os travestis da Avenida São João. Era a vez das
mulheres. Perseguiram até a Cassandra Rios e a Adelaide Carraro! E volta e
meia, os “porta-jóias” (camburões) levavam as “táxi-girls” dos “dancings”, as
“vedettes” e “show-girls” dos teatros de revista. Então, o mulherio
começou a “chiar”. E a se organizar, agrupar-se e sair para as ruas
reivindicando os seus direitos... E, claro, direitos negados! Também iam
presas. E “camburão” da Vadiagem era o que mais se via pela cidade...
Fim de quinzena era um inferno para os Office - Boys. Perdiam-se horas de
lazer na Secretaria da Fazenda. Minutos preciosos de ociosidade eram desperdiçados
dentro dos Cartórios de Protesto. E, não bastasse isso, reunida, a boyada estourava
pelo Viaduto do Chá e invadia a “Light”, para depois, seguir para a Companhia
Telefônica Brasileira e para os escritórios que ficavam lá no prédio dos
Diários Associados e prédios comerciais adjacentes. Um subir e descer escadas
que não acabava mais. E foi num desses fins de quinzena que, andando pela Rua
Sete de Abril, eu, em meio à boyada, me deparei com uma
passeata inusitada.
O mulherio (cerca de 30 mulheres, ou mais) saiu da Praça da República e
entrou na Sete de Abril. Formavam um grupo compacto que caminhava em
nossa direção. Era um absurdo conjunto de feministas gritando palavras de ordem
contra a ditadura repressiva e pregando a libertação e os direitos da mulher.
As mulheres do grupo caminhavam decididas - a líder, com um sutiã na mão,
símbolo da libertação da mulher - e todas com a blusa aberta, mostrando e
balançando a peitaria. Diante daquela visão, os pedestres ficaram paralisados e,
claro, excitadíssimos! O transito ficou atravancado. E a boyada,
sacana como o diabo gosta, começou a assoviar e a dizer “gracinhas”. O mulherio
continuava a caminhada, enquanto uma a uma do grupo despia a blusa. A boyada
enlouqueceu diante daquele presente de papai do céu: um montão de peitos
dançando livres em plena luz do sol. E os boys que, naquele momento, eram zero
por cento de consciência política e cem por cento de testosterona, começaram a
gritar: “As calcinhas! Tirem as calcinhas, já”! E em seguida, em coro: ”Sutiã
na mão, calcinha no chão”!...
A cavalaria saiu da Republica e entrou com tudo na Sete de Abril, tentado
controlar a situação, empurrando todo o mundo contra as paredes e para dentro
de lojas e prédios. Tomavam e quebravam as máquinas dos fotógrafos-jornalistas,
e, quebravam a cabeça deles também. Os policiais da PM largaram as viaturas nas
ruas vicinais e “enquadraram” o mulherio que, por sua vez, partiu para os
palavrões, acusando a Cavalaria e a PM de ser machista e chauvinista, e, de
“mastins raivosos a serviço dos usurpadores do poder”. Mais viaturas, desta vez
os camburões do DEOPS fecharam todo o quarteirão. As libertárias recuaram,
tentando voltar à República. Encurraladas, nada mais puderam fazer. Foram
empurradas contra a parede.
A boyada ria, ironizava, divertia-se vendo como os
policiais não sabiam o que fazer com toda aquela peitaria livre e solta. Estava
difícil controlar e imobilizar com as mãos aquele mulherio raivoso e agressivo.
Usavam o cassetete para mantê-las reunidas. E agrupadas ficaram até a chegada
da Polícia Feminina.
O mulherio foi levado pelas policiais de volta a Avenida Ipiranga, onde
foram revistadas no pouco que vestiam. E a boyada estava lá,
junto, para conferir... Afinal, nunca se vira tanta peitaria “dando sopa” nesta
São Paulo de Deus! A boyada continuava gritando: ”Sutiã na
mão, calcinha no chão”! Chegaram mais policiais que, junto com a cavalaria e os
cassetetes dispersaram os boys e a multidão. Aqueles desmancha-prazeres!
E, do outro lado da avenida, na calçada da República, vimos chegar mais
camburões para levar o mulherio. E safada, com a testosterona a mil, a boyada
se divertia, dizendo, a cada viatura que saia: “Está saindo o caminhão do Leite
Vigor”... “Sai agora o caminhão do Leite União”... “Lá se vai o caminhão do
Leite Paulista”... “ Com tanto buraco nas ruas todo esse leite vai virar
coalhada”! Risadas, gargalhadas... De repente, acontece mais um “estouro” da boyada!
Era preciso ligar para a firma e avisar que a cidade estava um caos. A boyada então
disparou, levantando a poeira do chão, atropelando as pessoas, em busca de um
telefone público... O dia tinha-se transformado em uma aventura e tanto!
À noite os telejornais mostraram o Brasil “cor-de-rosa”. Na manhã
seguinte os jornais publicaram mais uma receita culinária que nunca dava certo.
E fotógrafos e jornalistas cuidaram de suas feridas... Mas a boyada,
ilesa, teve assunto para muitos meses.
Por Wilson
Natale
7 comentários:
Olá, Wilson!
Saudade dos seus textos... Que bom que você retornou.
Que coisa, né? Grandes revoluções, importantíssimas, que fizeram a nossa história e, muitas vezes, ficam esquecidas no tempo.
Porém, a história nos mostra quanto foram importantes estas revoluções sociais e comportamentais.
Excelente texto.
Obrigada.
Muita paz!
Natale, li seu texto com um certo gosto de amargura. Nessa época eu já não mais fazia parte da boyada. Já era um inveterado boêmio, que vivia os dias trabalhando e as noites prevaricando ao lados das mulheres e nos mais diversos ambientes noturnos. Então, não pude ver ao vivo e à cores esse festival de peitos, do qual tive apenas notícias transmitidas por sortudos que merce do destino, estavam próximos da ocorrência. É verdade que, também, busquei novas informações e fotos nos jornais dos dias seguintes e fui agraciado com diversas receitas culinárias as quais, por razões óbvias, nunca coloquei em prática. Espero, neste bife de comentário, ter justificado meu amargor por sua lembrança.
Está mais do que provado, Wilson, que pra arregimentar um maior número de protestantes é só deixar nas mãos (ou peitos) das mulheres. Elas, na condição de peitudas, enfrentam qualquer comboio militar, sem oferecer perigo ao restante da população.
Gostei e relembrei daquelas épocas, Natale, vc descreve muito bem o dia-a-dia nos anos de chumbo. Eu, apesar de trabalhar na cidade, não tive a felicidade de ver esse belo espetáculo. Vc foi muito feliz, Wilson, e provou que pra movimentar e aglutinar a população, sem disparar tiros, sem violência e nem quebrar vitrinas, só as mulheres, mesmo, as únicas que enfrentam um batalhão do exercito porque são PEITUDAS. Parabéns, belo Wil, un baccieto en la testa.
Laruccia
Natale, não lembro deste ocorrido porque meu pai guardava e controlava sua prole e nos mantinha longe dos riscos da nossa cidade, nesta época. As manifestações foram e continuam importantes para novas conquistas.Das atuais, eu participei aqui no meu bairro e me senti o máximo no meio dos jovens. Ótimo texto.
Ô, Natale!
Saudade dos seus textos, sempre minuciosos nas descrições e repletos de tiradas com muito (bom) humor!
Infelizmente na década de sessenta eu morava em Guarulhos, naquela época ainda interior de São Paulo e a uma hora de ônibus pela antiga e estreita Via Dutra. Ou então, a uma hora e meia pela Penha, Tatuapé, Mooca, até chegar à Praça Clóvis! E assim, a boyada guarulhense não teve oportunidade de participar ou assistir às inúmeras passeatas e protestos dos quais nem notícias tínhamos, pois os jornais, impedidos pela censura, colocavam em lugar das notícias as famosas receitas...
Excelente e muito divertido este novo texto, que, espero, marca o seu retorno ao Memórias de Sampa.
Abraço.
Caro Natale, sou mais velho que você. Assim, não era boy nessa época- alias, nunca fui- e não tive a oportunidade de testemunhar a gloriosa visão dessas feministas em topless, strip teases em plena rua. Mas, cá entre nós, precisava mesmo TER PEITO para enfrentar a abominável ditadura, nesses tempos terríveis. Abraços.
Natale, realmente, um tempo difícil daqueles, o boy só tinha mesmo testosterona e neca de consciência política, como você bem relatou. Esse assunto relacionado à ditadura sempre volta à baila. A gente não consegue esquecer. Já fui criticada por colegas de letras duramente no SPMC pela temática, mas é impossível não se voltar a ela. Tem de tudo - tristeza, trauma, infelicidade, mas a força da juventude em criticá-la e buscar alternativas. Parabéns pelo texto e estou muito contente em te ler novamente. Abraços da Vera Moratta.
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