segunda-feira, 22 de julho de 2013

"E agora, José?"


Imagem: Museu do Ipiranga

Num tom levemente interrogativo, o meu pai nos convidava a dar uma volta pelos jardins do Museu do Ipiranga. Invariavelmente a resposta era positiva e rápida. Silencioso sempre, o meu pai olhava o entorno, provavelmente se lembrando da sua infância pobre no Ipiranga e eu, na minha meninice, olhava com respeito os jardins magníficos. De tão gigantesco e sagrado eu imaginava  que aquele espaço nem era meu. Especialíssimo demais para uma mortal que ainda dava os primeiros passos para algum entendimento.
Visitávamos o lugar com uma roupa melhor, com o par de meias mais branco e não comprávamos pipoca do carrinho e nem sorvete de groselha.
Tentei comprar um picolé uma vez. Aluna de quarto ano primário, a professora resolveu nos levar até lá. A turma caminhou por ali, observando todos os detalhes possíveis. Perguntei a ela se eu poderia comprar um sorvete, ela respondeu: “mas, Vera, eu não sou tua mãe”.  Não comprei.
Mas por ali rondava alguma poesia, melodias incrustadas  nas paredes, dentro de uma arquitetura singular para a historia do Brasil.  Com uma arquitetura  de inspiração renascentista e  a  busca da beleza mais perfeita,  a forte presença dos aspectos humanistas e a utilização sistemática da perspectiva marcaram a renovação artística. Uma renovação  nascida numa Itália economicamente próspera e que se desabrochara na grande produção do conhecimento. Do ponto de vista técnico, a arquitetura eclética também se aproveitou dos novos avanços da engenharia do século XIX, como a que possibilitou construções com estruturas de  ferro forjado e, além do uso e mistura de estilos estéticos históricos, a arquitetura eclética  se caracterizou pela simetria, busca de grandiosidade, rigorosa hierarquização dos espaços internos e riqueza decorativa.

A cidade de São Paulo passou a ser o nosso maior retrato das grandes mudanças do final do mesmo  século XIX. A antiga cidade de taipa de pilão foi sendo gradativamente substituída por construção de tijolos, trazidos pelos ingleses e fabricados posteriormente por italianos. A grande produção do café dinamizou a economia e o progresso se tornou bem mais visível. A abolição da escravatura promoveu uma forte migração – do campo uma generosa massa de escravos libertos se deslocou para a cidade buscando um trabalho mais digno e longe do açoite. Italianos, portugueses, espanhóis e mais tarde japoneses, árabes, judeus e tantos outros vieram para uma cidade única, receptiva para o trabalho e capaz de conviver com as diversidades  culturais. Ou melhor, mesclando os valores para então gerar um saber mais refinado, ímpar, riquíssimo.
Foi o período da história em que o  desenvolvimento comercial, urbano e cultural se firmaram de modo inconteste . Com uma indústria nascente, aos poucos o operariado urbano  foi se formando e os bairros operários, com o Ipiranga, Braz, Mooca, Belém foram ganhando uma dinâmica própria, com as suas habitações pequenas, sempre ao lado da fábrica. E tudo na mesma cor.
E foi nesse momento histórico, no meio a transformações significativas e únicas, que surgiu a ideia de se erigir um monumento para homenagear um marco político daquele mesmo século: o episódio da Independência do Brasil ganharia o seu espaço cultural próprio, o Museu do Ipiranga.
Bem ali,às margens do riacho, onde foi teoricamente difundido  um imaginário coletivo apropriado para aquele tempo: a figura do herói, a valorização do ideal de nação.
Para a edificação do Museu,  foi contratado como  o engenheiro italiano Tommaso Gaudenzio Bezzi em 1884, somente inaugurando sua obra arquitetônica 6 anos depois.
E não há um estudante no país que não tenha se encantado com aquela história amarrada de romantismo: o herói deu um grito, foi aplaudido, passou a ser venerado e a nação passou a ser tecida com as cores  verde, sendo referência à casa de Bragança, da qual fazia parte D. Pedro I e o  amarelo simbolizando a casa dos Habsburgos, da qual fazia parte a princesa  Leopoldina, esposa do Imperador.
Com ou sem a influência da Escola Romântica, sempre pronta a idealizar, o monumento retrata uma parte da identidade nacional. Impossível se passar por ali indiferente. Tem história ali, tem vida em movimento. Centenas de operários  construíram um símbolo num trabalho envolvendo suor e um cansaço infinito. Ciência e paixão, sonhos e buscas. Tempo... ah, o tempo, sempre cercado da eterna musicalidade das almas inquietas, da necessidade imperiosa do contar e deixar o olho brilhar com o encantamento das conquistas...
E leio na Folha de São Paulo (edição eletrônica – 05/04/20l3)

“Os banheiros estão interditados por falta de condições, o mato invade os jardins, um resto de pipa está enroscado em uma das surradas estátuas dos representantes da independência do Brasil e a cripta com os restos mortais de d. Pedro 1º serve de "motel" para casais mais afoitos.
Os elementos formam o atual cenário do complexo dentro do Parque da Independência, com o Monumento à Independência, museu e áreas protegidas, no Ipiranga, na zona sul de São Paulo”.

E, apesar de todos esses pesares, atropelos de sentimentos, refletindo sobre a construção histórica do Brasil, é preciso resistir. Fabricar forças para que o conhecimento tenha espaço, saber que as críticas haverão de inundar as nossas almas, ferir sonhos, mas o projeto de nação não foi definido.  É preciso gritar, mas gritar muito, muito mais que o grito simbólico do primeiro imperador. Urrar, fazer acordar... acordar para o respeito aos trabalhadores do conhecimento, criticar apontando soluções, sofrer para a defesa do espírito. E jamais esmorecer. Que tenhamos vida, crenças e a sabedoria para não nos entregarmos à mesmice.
Por isso, cito Drummond:


Se você gritasse,
se você gemesse,
se você tocasse,
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você cansasse,
se você morresse...
Mas você não morre,
você é duro, José!





Por Vera Moratta

11 comentários:

Soninha disse...

Olá, Vera!

Seja muito bem vinda a este espaço que é de todos nós.
Seu excelente texto veio enriquecer, ainda mais, o acervo do blog que é o que é graças à colaboração dos geniais autores, nossos amados amigos deste blog.
Que delícia recordar o Museu Ipiranga e o Parque da Independência, locais onde eu também ia passear, com minha irmã mais velha e amigas, ou mesmo com meu pai.
Verdadeiro cartão postal de Sampa, temos orgulho de te-los em nossa amada cidade.
Adorei conhecer os detalhes históricos, tão bem narrados por você.
Muito obrigada.
Muita paz! Beijossssssss

Arthur Miranda disse...

Que bom te-la aqui no Blog Vera, Belo texto que me fez voltar ao final dos anos 50 quando eu ia semanalmente visitar o museu e o Parqueda independencia, pois na possuia uns primos + ou - da minha idade que moravam ali perto em 60 eles mudaram para o Rio de Janeiro. Parabéns.

Miguel S. G. Chammas disse...

Alvissaras! Vera está entre nós!
Ela chegou e nos trouxe um novo texto, uma nova aula de "paulistianismo" falando de nosso histórico museu, de suas adjacências, de seu passado e, infelizmente, de seu presente.
Obrigado amiga memorialista por repartir conosco as tuas lembranças, aguardamos, outras mais.

Luiz Saidenberg disse...

O belo parque, berço de nossa independência. Já o vi, não faz muito, em melhores condições, mas mudou o prefeito. Dessa turma do PT pode-se esperar qualquer coisa, e geralmente nada de bom. Obrigado pelo alerta, cara Vera.Abraços.

Teresa disse...

Que bela crônica: didática, mostrando a importância do nosso museu (afinal ele se chama Museu Paulista). Um detalhe, Luiz, o descaso não é da Prefeitura, é do Estado, pois o museu é da USP e fico pasma em saber que estejam abandonando o Parque da Independência que tem tanta História e histórias para contar.

margarida disse...

Vera, seja bem vinda! O Museu do Ipiranga sempre foi visto tanto nos bancos escolares como nas visitas de campo, com muito respeito,principalmente porque aprendemos que lá aconteceu o Grito da Independência do Brasil, fato histórico importantíssimo para nosso País.Relembrar tudo como foi nos fantasiado despertava um sentimento de patriotismo enorme. Sinto que esteja abandonado e esquecido pelos nossos representantes. A última vez que estive fazendo uma visita, já percebi isso. Seu texto está perfeito, meus parabéns. Um beijo.

Modesto disse...

Vera, querida Moratta, que prazer enorme contar com sua escrita no blog " Memórias de Sampa". Estava esperando que esse dia chegasse e como vc mora em outro estado, pensei que vc não se interessaria em colaborar com a Sonia e o Miguel, criadores desse blog. Seja bem-vinda, Vera, receba meus cumprimentos, agora com os dois olhos já descortinados da catarata que impedia-me ter uma visão mais clara e límpida.
Sua preciosa narrativa que tem o nosso Museu como tema, está impecável, sonoro retrato do cenário que um dia D. Pedro I viu, no seu gesto, (...e grito!)um momento que ficaria na estória como marco definitivo da nossa independência. A beleza de seu trabalho, Vera, está na meticulosa atenção aos detalhes, enriquecendo sobremaneira uma narrativa inebriante. O cuidado em detalhar, historicamente, a construção do museu, seu construtor, estilo, beleza arquitetônica enfim, tudo relacionada a uma narrativa enormemente atraente. Parabéns, Vera, seja bem recebida por todos nós, faça "MORATTA" em nossos corações.
Modesto.

Unknown disse...

Qe bacana sua chegada ao Memórias de Sampa!O blog, assim, fica mais enriquecido, sem dúvida!
Ignacio

Wilson Natale disse...

MORATTA:
Que bom você estar aqui, junto a nós.
Lamento tanto quanto você as condições do Parque da Independência.
Mesmo cercado, com vigilantes e com vigilância por cameras, o Parque está mais vulnerável do que no tempo em que era aberto.
Felizes somos nós os que temos lindas recordações.
Abração,
Natale

suely aparecida schraner disse...

"Zezinha", (Vera Moratta), do meu coração! Seu texto me agradou e ressuscitou gratas lembranças.Muito obrigada! beijos.

Zeca disse...

Vera!

Bem vinda ao Memórias de Sampa! Pela beleza do texto, certamente o enriquecerá ainda mais.
O Museu do Ipiranga, um dos mais belos cartões postais de nossa cidade e importantíssimo na preservação da nossa história não merece o abandono em que se encontra hoje! Os milhares de operários que construíram esse símbolo da nossa própria identidade não merecem o abandono em que se encontra a obra em que deixaram suor, sangue, cansaço e partes de suas próprias histórias. É mesmo preciso gritar para acordarmos de nosso também histórico sono, deitados e acostumados ao berço esplêndido.
Parabéns pelo belíssimo texto!

Abraço.