O
trânsito anda pela hora da morte, como diria a avó. Despende-se o triplo do
tempo no trajeto. A cidade ferve na tarde gelada. Perueiros são como abelhas.
Passam zunindo. Os passageiros vão sendo engolidos por esta modalidade de transporte.
Na perua, uma cena curiosa: um homem se levanta e cede lugar para uma senhora.
Ela lá em pé, impassível. Ele intrigado: - Não vai sentar? E ela: - Estou
esperando esfriar... Ele já irritado: - Então fica aí que eu mesmo sento
enquanto esfria... O cobrador, um “alto-falante” humano, cara e tronco pra fora
da janela, grita: “Vai terminal, sobe a Alameda, Largo Treze?”
Já no ônibus, sucedem-se as mais diferentes profissões: vendedores (de balas, salgadinhos, decalques), pedintes, aleijados, cegos, surdos e até um mudo com seu ajudante-orador.
Entram e pedem para passar por baixo da catraca. Deitam de cara pra cima e rastejam. E com que desenvoltura! A ‘roleta’ é quase rente ao chão... Levantam-se rápido e discursam: “Senhoras e senhores! Desculpe estar aqui falando. Não quero atrapalhar a viagem de vocês. Estou desempregado, tenho filhos pra sustentar... Pedir não é vergonha! É melhor do que roubar algum trabalhador ou uma senhora, né? Vamos ajudar o próximo que Deus vai lhe devolver em dobro! Aceito ticket, moedas. Pode ser 1 real, 10 centavos, um alimento, qualquer coisa me ajuda”.
Deste modo, vão convencendo um ou outro a doarem suas moedinhas ou a comprarem suas coisas. Muitos dos passageiros fingem não ouvir, tamanha a freqüência com que entram e descem, num estranho balé humano. Homens, mulheres, tocadores de gaita, jovens vestidos de palhaços, idosos: verdadeiros artistas, neste palco sobre rodas. Talentos da exclusão.
Lá fora, os puxadores de carroça disputam o asfalto com os carros velozes...
por: Suely
Aparecida Schraner
10 comentários:
Muito bom Suely. Você tocou ou focou numa ferida social, em cuja realidade é impressionante.
Permita-me meu comentário real. Nosso povo excluído não é de talento e sim de posição. Não vamos apontar responsáveis pela educação, pois educação é um tema polêmico. Se cabe a pessoa, a família ou ao estado brasileiro.
Dos três penso eu. Isso que você aborda é tão cruel que caberia um novo Cristo sair pelas ruas e levantar essa gente para a cidadania plena. Encoraja-lhas dizendo, que elas têm dignidade de filhos de Deus. Porém é preciso ter muito amor, paciência, compreensão por essa gente 'estúpida' por falta talvez de oportunidades na sua vida.
Você e eu temos alguma coisa haver com isso? Como é que vamos educar pessoas para essa situação lamentável, a dos talentos excluídos. Não sei. Talvez pedindo ajuda para Deus. Deus ajude as pessoas a entenderem que tem dignidade que não é preciso apelar para a pedição criativa, para merecer misericórida. Algo também precisa ser feito, pelo social através das entidades publicas. Educação exige cuidado e cuidado também nas ruas, trens, coletivos, metrôs.
Um povo assim nos envergonha bastante, somos um pais muito atrasado e não sabemos de quem é a culpa. Penso que a responsabilidade é social, mas os nossos governos tem que tomar iniciativa nesse problema que você tão bem abordou. Parabéns!!!O assunto é muito sério.
Já os carroceiros Suely, que dignidade. Não é feio ser pobre, o feio é ser mal-educado, querendo levar vantagem na malandragem...
Suely!
Parabéns pelo texto que nos faz enxergar os invisíveis! Esses vendedores de qualquer coisa, esses cegos, mudos, surdos, aleijados (perdão pelas palavras politicamente incorretas) que invadem os coletivos atrás de moedinhas nos causam tanta aflição e até mesmo vergonha (por eles, por nós, pela situação toda) que geralmente fazemos "cara de paisagem" como se nada daquilo estivesse acontecendo, como se não ouvissemos suas vozes...
Abraço.
Suely, mais um texto, mais uma joia.
Aliás, esse texto além de joia é uma verdadeira bofetada no povo brasileiro, inclusive eu.Gostei demais.
Obrigada, Zeca,Miguel e Anônimo (pela visita e comentários). Abraços.
SUELY:
No teu texto, o palco da vida, onde se representa ora a comédia humana, ora a tragédia urbana.
Luta-se pela vida. Luta-se para sobreviver ou subviver.
Fazemos o nosso papel amargando na boca a pouca comida, sobras do ontem.E, no bolso, na bolsa, a eterna incerteza do quanto tempo alcançará o nosso dinheiro minguado.
Luta-se por toda a parte, da manhã ao fim do dia.
E a noite, cabeça no travesseiro, percebemos a realidade. Não estamos num palco, mas no picadeiro de um circo onde entre contorcionismos e malabares, entre o trapézio e a corda bamba, lutamos para manter o equilíbrio, pois que a vida é preciosa e há tantos sonhos a realizar.
Corpos moídos adormecem e sonham que um dia realizarão tudo aquilo que a esperança insiste em desejar.
Sonhando os atores da comédia/tragédia da Vida esquecem por um momento aqueles poucos que nada fazem e que recebem todos os louros.
Uma nova manhã, um novo dia. O corpo insiste em ficar na cama. Mas, a Esperança é mais forte. Insiste em seguir em frente...
E o show deve continuar.
amei o teu texto!
Abração,
Natale
Um pequeno flagrante do cotidiano, bem ilustrado com a riquesa de detalhes, emprestando ao leitor uma viva apresentação de um problema crucial que é nossa vida social. Cada vez que leio algo sobre nosso transporte urbano, me congratulo por não precisar mais servir-me deles. Seu texto é muito convincente, Suely, parabéns.
Laruccia
Sueli, seu texto mostra uma realidade que preferimos não enxergar por não conseguirmos solucionar este problema social. Fica mais fácil e menos penoso fingir que não temos nada com isso. Mas claro que está tudo errado os talentos da exclusão estão aí e precisam de ajuda.Ainda não perdi a esperança que um dia tudo irá melhorar. Um grande beijo.
Sueli, o problema social em nossa cidade é realmente grave mas as autoridades competentes estão mais preocupadas em manter seu "status" do que tomarem providências sérias para resolver o assunto, nós também somos culpados por elegermos políticos despreparados e alheios ao sofrimento do povo, é uma pena, abraços, Leonello.-
Sueli, o problema social em nossa cidade é realmente grave mas as autoridades competentes estão mais preocupadas em manter seu "status" do que tomarem providências sérias para resolver o assunto, nós também somos culpados por elegermos políticos despreparados e alheios ao sofrimento do povo, é uma pena, abraços, Leonello.-
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