Lá por 1973, nossa amiga Terezinha fazendo exercícios na Escola de
Bailado do Municipal, sofreu uma grave torção no pé. Estava “de molho”,
solitária e triste. Sem poder sair de casa, pegou no telefone e convidou a
todos nós, os amigos, para uma noitada de comes e bebes em sua casa, no sábado.
Todos concordamos em ir.
Combinamos nos encontrar, às 20horas, na esquina da Avenida Paulista com
a Rua da Consolação. Todo mundo lá, atravessamos a Paulista e entramos na
Avenida Dr. Arnaldo, viramos na Rua João Florêncio e “carcamo” o dedão na
campainha da casa de Terê.
Mamy – apelido de Dna. Clarice, mãe de Terezinha - abriu a porta e pediu
que entrássemos, o portão estava aberto. Entramos. A noite prometia...
Começou com a Terezinha, escorada pela muleta, vindo nos receber no
“hall” de entrada. Ela estava radiante!
Sentados na sala, ouvimos a Terê falar do acidente e dos terríveis dias
de clausura que estava passando. Chegaram os comes e bebes e, naquela loucura
de que todos nós éramos possuídos, ora conversávamos e assistíamos à televisão,
ora conversávamos e escutávamos o “som”; ora conversávamos sério, ora
contávamos piadinhas...
A noitada estava que era uma beleza! Então o Carlos pediu à Terezinha
que tocasse a Sonata ao Luar no piano... “Com o meu pé desse jeito, “sua
anta”“? “Não dá”! Respondeu Terê. O Carlos retruca: “Você usa os pés para
dançar e as mãos para tocar, “pirada””. E Terê: “Ô “Zé - mané” ”! “Vou
comprimir os pedais do piano com o quê”? “Com o rabo”?! “Piano tem abafadores,
sabia”?... “Numa boa”, interrompendo o bate-boca, o Silvio se propôs a lidar
com os pedais. Terezinha era um “desbunde” de perfeição técnica!
Já o Silvio, agachado sob o piano, que não acompanhava a partitura era
um desastre. Ríamos muito. Aquela audição da Sonata estava divertidíssima.
Euterpe que nos perdoe! E Beethoven também!...
Lá pelo meio da Sonata, a casa ficou às escuras. Acendemos os nossos
isqueiros. Foi um fusível?... Mamy olhou pela janela e falou: “Foi corte de
energia”. Nem na rua tem luz”!
Castiçais com velas foram acesos. Sentados no tapete ficamos a petiscar,
a beber vinho e a conversar. Passa um tempão e nada da energia voltar. E a
conversa foi esmorecendo. Então, a Terê teve uma brilhante ideia: “Que tal
aproveitar essa falta de energia e fazermos uma reunião do tipo “histórias da
meia-noite”?” Aplausos e aprovação geral!
Na penumbra, às luzes dos castiçais, contávamos as nossas histórias de
terror. Dramas que se transformaram em assombramentos vingativos; maldições que
destruíram vidas; fantasmas que andavam pela casa fazendo barulhos; mortos que
chamavam os vivos, aparições e relembramos desde a loira do banheiro até a
menina que perambulava pelos corredores do Martinelli... E todo mundo, meio que
entrando no baixo astral, sentindo arrepios estranhos pelo corpo e nos
cabelinhos da nuca.
A Clara começou a contar histórias fantasmagóricas sobre o Cemitério da
Consolação e do Araçá... No meio de uma das histórias da Clara, o Orlando, meio
“cabreiro” nos disse: “Gente, to gostando não do clima que está aqui. Melhor
parar. Vocês “sacaram” que estamos a uma quadra do Araçá”? Ninguém tinha
“sacado”! Ai o clima pesou mesmo e a “ficha caiu”. Silêncio absoluto.
Mamy que, até aquele momento apenas ouvia, riu e nos disse: “Agora é a
minha vez de contar uma história de terror. E é sobre o Araçá e sobre o Senhor
Manequinho, que foi o nosso jardineiro por muitos anos. Aconteceu no fim anos
30...”.
Anos de convivência transformara o jardineiro em “prata da casa”. A mãe
de Mamy não permitia que ele fosse embora sem que jantasse. Em um desses
jantares, entretidos em falar sobre podas, tipos de plantas, adubos e tipo de
gramado mais adequado ao jardim, Seu Manequinho foi embora quase meia-noite.
Feliz, despreocupado, subia a Doutor Arnaldo, em direção à sua casa, na
Teodoro Sampaio. Atravessou a Rua Major Natanael e viu-se diante do portão do
Araçá, onde havia o necrotério. Seu Manequinho sentiu um arrepio pelo corpo.
Como qualquer um de nós, ele não gostava de cemitérios, principalmente àquela
hora da noite. Respirou fundo, apertou a alça da maleta que continha as suas
roupas de trabalho e seguiu em frente. De repente, o horror e o pânico tomaram
conta dele. Caminhando, viu aparecer no alto do muro do cemitério uma cabeça
humana...
Puro terror! Uma cabeça com uma cara branquíssima e olhos brilhantes
arregalados! O fantasma galgava o muro. Enregelado, Seu Manequinho apertou a
alça da maleta, deu um grito de horror e começou a correr. O fantasma soltou um
grunhido aterrador, pulou o muro e correu atrás do jardineiro.
Seu Manequinho corria desesperadamente e o fantasma o seguia bem
próximo. Corre que corre, quando ele estava próximo ao muro do Cemitério do SS.
Sacramento, o fantasma estava colado a ele. Seu Manequinho deu um grito
desesperado, virou-se e acertou violentamente o fantasma com a maleta e
desmaiou...
O policial - recruta ainda - fora escalado para a ronda do necrotério do Cemitério do Araçá que naquele tempo também funcionava
como IML. Desconfortável e morrendo de medo por estar dentro de uma necrópole
engolida pela escuridão, resolveu tirar o quepe, galgar e ficar sentado no muro
do cemitério. Botava a cara no muro quando viu o Seu Manequinho passar. O
jardineiro deu um grito tão assustador que apavorou mais ainda o pobre policial.
Seu Manequinho começou a correr e o policial, não teve dúvidas (achando que o
jardineiro vira, sabe-se lá que coisa), pulou o muro e também correu na mesma
direção. Quando estava junto a ele, recebeu uma tremenda maletada no rosto.
Acudido pelos motoristas e passantes, esclarecido o mal entendido, Seu
Manequinho que, não sabia se chorava ou se ria foi levado de carona para casa.
O policial envergonhado e mudo foi ajudado a galgar o muro do cemitério e lá
ficou sentado, “borrando-se” de medo...
Desde o fato acontecido, Seu Manequinho atravessava a Doutor Arnaldo e a
subia pelo lado do Emílio Ribas... Mas...
Mas o Destino gostava de brincar com o Seu Manequinho!
Tarde da noite ele passava pelo portão do Emílio Ribas, quando do nada,
ouviu uma voz cavernosa perguntando: “O amigo poderia me dizer a hora”? Não
esperou para saber quem perguntara. Desatou a correr feito louco. Ultrapassou a
Teodoro, onde morava e só parou de correr quando chegou à esquina da Cardeal
Arcoverde.
Talvez fosse o vigia dentro da guarita a pedir-lhe a hora. Talvez não...
Rimos muito com essa história. Contamos outras, também hilárias.
A nossa noitada terminou bem, com o dia já claro e com o café da manhã.
E a energia elétrica ainda não havia voltado.
por: Wilson Natale
6 comentários:
Natale, é a típica historia de terror em grupo. Dei boas risadas.
Natale, bom dia
São Paulo, realmente, é uma cidade insólita, coisas estranhas acontecem por aqui, principalmente nesse plano místico, misterioso. Muitos relatos são parte de um folclore, a maioria, mas outros são fatos que não se explicam. Eu sou uma pessoa que deixei de ser incréu 100%, creio em pelo menos 2% das coisas insólitas (fazia tempo que eu não usava "insólito/a!), por experiência própria. Ainda vou falar sobre isso, em havendo tempo de vida...
Ignacio
Natale!
Que bom ler mais um dos teus textos! Fazia um bom tempo,já!
Hoje, dificilmente se consegue reunir a "turma" para uma noitada gostosa como essa. Mas as histórias "de fantasmas" ainda agradam à maioria, mesmo aos mais indrédulos.
Felizmente eu também sou do tempo em que as pessoas se reuniam e ficavam contando "causos" que, fatalmente terminavam em histórias de assombrações, de coisas inexplicáveis, de ets.
Gostei muito de te ler.
Abraço.
Adorei ler estas passagens. Valeu!
Natale, que satisfação de conversar com vc, novamente. "Dopo tanti mesi, me pare chi parlo con un fantasma.
Gostei do entretenimento com as almas penadas, Wilson. Toda história de fantasma, "si non'e vera, e ben trovata". Abraços e parabéns, Natale, belo figliole.
Laruccia
Natale, quando criança sentávamos na caçada na porta de casa e lá ficávamos contado historias parecidas como estas. Se eram verdadeiras não sei, mas causavam um medo terrível na garotada. Gostei muito da sua historia. Um beijo,
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