Das
doenças de infância, lembro de algumas.
Da doença
que nos trouxe, a mim e a meus pais, definitivamente, do interiorzão para São
Paulo, um problema renal bastante complicado que rendeu internação na Santa
Casa, verdadeiramente não lembro, 'cayó en el olvido'; eu era muito pequeno,
mas sei que foi coisa séria, quase que bati os sapatinhos de tricot, conforme
rezam as lendas que são contadas e recontadas no seio da família Souza Leme...
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Tive
coqueluche, acho que em 1944, período da guerra, do racionamento de tudo, da
fome mal disfarçada. Do cheiro de gás, das náuseas, dos vômitos, da tosse que
não cessava e me deixava extenuado, com um cansaço infinito, disso me lembro
bem:
- Esse
menino está com 'tosse comprida'; precisa levar ele no gasômetro, lá no Parque
D. Pedro prá respirar gás. Lá tem 'que nem' um parque infantil, tem balancê,
escorregador, tem um jardim e tem um coreto coberto que é prá não tomar chuva
se 'tiver' chovendo ou se 'tiver' muito sol... quando tem sol é melhor porque
as crianças podem andar um pouco, brincar... leva marmita porque passar o dia
lá dá fome...
- ...mas
cheirar gás?! não é perigoso? toda hora a gente vê desgraças, pessoas morrendo
quando tem escapamento de gás... sai na A Hora, no O Dia, no Correio
Paulistano, na A Gazeta, no Diário da Noite, se ouve no rádio...
- ...faz
não! Bobagem... Agora, se você tem medo de levar o menino no gasômetro, faz
promessa pro Sto Antoninho da Rocha Marmo... ele morreu tuberculoso, escarrando
sangue e com tosse comprida em 1918, no tempo da 'gripe espanhola'; sempre
ajuda...
Minha
mãe, por via das dúvidas, fez as duas coisas: gás seguido de rezas e promessas
pro menino azarado e canonizado pelo povo; prá garantir e arrematar, d. Luzia,
uma siciliana de vastos bigodes e uma verruga de bruxa na face esquerda, vinha
todo dia fazer uma benzedura, falando orações num italiano ininteligível e
bocejando o tempo todo, enquanto aspergia uma aguinha com um galho de arruda
sobre minha cabeça e pescoço. A coisa toda funcionou pois acabei me curando da
tal de coqueluche, mas me senti bastante enfraquecido por algumas semanas.
Passados
dois ou três anos acordei com um gosto horrível na boca. Naqueles meses gelados
de inverno, anos 1940s, meus pais calafetavam todas as frestas da porta e
janela com jornais para que o ar frio não entrasse quarto adentro. Eu dormia
numa cama Patente colocada ao lado da cama do casal após anos dormindo no chão
em um colchão de crina: a cama fora comprada de 2ª (3ª?) mão em uma loja de
móveis usados da Conselheiro Ramalho... Fazia muito frio. Nossa cidade de São
Paulo, 60, 70 anos atrás, era muito fria, garoenta.
- Mãe, eu
acho que 'tô cum febre!
-
'xovê... (as costas da mão em minha testa por alguns segundos. Procura a
"pera" para acender a luz...) Meu Deus, como você está quente, como
você está vermelho... (chama a vizinha do quarto ao lado) D. Maria Capuano, vem
aqui ver meu filho, por favor...
Minha mãe
não sabia nada de como cuidar de uma criança, casara-se com 17 para 18 anos e
vivera até então em uma pequena cidade no interior, portal do sertão. Aos
poucos ía aprendendo a viver; dependia muito das vizinhas...
- Zezé, é
sarampo, rosolia, capito?...
-
Sarampão? Sarampo brabo?
- Ecco!
- Quequeu
faço, D. Maria?
-Chama il
SAMDU...
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-"Mas
sarampo mata, doutor? Eu sei que o sarampo pode deixar o doente surdo..."
-”Surdo e
mortinho da silveira se não fizer o resguardo direito”...
O médico
do SAMDU disse que não haveria muito a fazer: baixar a temperatura, banhos
mornos; deixou uma caixinha de comprimidos de 'veramont'. "O sarampo, se
veio, vai embora, minha senhora e se a criança não quiser comer, empurra a
comida... tem de beber muita água"...
Na Ruy
Barbosa, 468, coração do Bexiga, moravam 17 famílias de trabalhadores, um
cortiço que fazia jus a seu outro nome sinônimo: colmeia, um núcleo de abelhas
operárias, e eu, como única criança, tinha 16 avós e conselheiras, portanto uma
infância maravilhosa, era quase que sufocado de tanto carinho. Tive avós italianas,
avós negras, avós mulatas. Na doença, a cada meia hora, uma dessas avós vinha
até a porta de nosso quarto: - Zezé, o Inácio ' tá melhor?
- Não, d.
Nazareth... a febre não vai embora e ele não está conseguindo engolir nem
água...
- É assim
mesmo, mas vai passar.
Ah, d.
Nazareth!, mulher do século XIX, com suas 4 ou 5 saias que roçavam o chão, pano
cheio de cores amarrado africanamente na cabeça e cobrindo seu pixaim branco
como a neve, obrigado!
Ah, d.
Maria Capuano, minha avó italiana, de fala enroladíssima, quase que incompreensível,
vizinha parede e meia, conselheira e que filava os programas de rádio que nós
ouvíamos..., obrigado!
D. Maria
Galvão, viúva de um negrão, italiana mãe de filhos mulatos, o Roberto, o
Othelo, d. Lidia, d. Celina, d. Ida (que um milhão de anos depois eu cuidei na
Neurologia do HC), e do estranhamente loiro de olhos azuis, o Zezinho, também
conhecido como Ratinho...obrigado!
D. Luzia,
que benzia em italiano, obrigado!
D.
Sebastiana, d. Rosa, obrigado!... Agradeço a todas as minhas avós do cortiço
que ajudaram minha mãe, ensinaram receitas de mezinhas, que rezaram por mim,
que a minha situação era grave, eu estava morrendo...
Lembro de
meu pai chorando, me carregando no colo, me levando para uma área ensolarada.
Lembro até hoje do gosto de cabo de guarda-chuva na boca; lembro dos fogos na
noite fria, era o mês de junho...
Mas, como
disse d. Nazareth, tudo passou e eu comecei a melhorar, bem aos pouquinhos. Num
domingo de sol meu pai me carregou até o belvedere do morro dos Ingleses e, lá
do alto, vi nossa cidade até Santana e a Cantareira: - Pai, lá o que que é? São
aviões, né?:
- É, são
aviões... lá é o Campo de Marte...
- O
senhor me leva lá um dia? Eu nunca vi um avião de perto...
- Levo
sim, levo! Mas você tem de melhorar, ficar bom, com força para andar...
- O
senhor está chorando de novo?
- Não,
quem disse que eu estou chorando? Olha lá, 'tá vendo a igreja do Carmo? Você
consegue ver as horas daqui?
-
Consigo...
Sobrevivi
ao sarampo por sorte e por amor de toda uma coorte de vizinhos amigos com seus
carinhos e orações e não há como esquecer das lágrimas de meu pai e do
desespero de minha mãe... Naquele ano morreram muitas crianças vítimas da
doença quase epidêmica. Tive sorte.
**********
Não era
minha intenção desenvolver esse tipo de narrativa, peço desculpas pelo aspecto
quase mórbido do texto, mas as lembranças e as emoções foram muito fortes, não
deu para fugir.
O texto
não é meu, é de um menino do Bexiga, com seus 6 ou 7 anos, que tinha certeza
que iria morrer no dia de São João e cujo estado febril, o levava a delirar:
- Alá um
balão, pimpão!... cai aqui, te dou um tostão!
-
Batizei!
-
Crismei!
Aos bons
tempos do Bexiga solidário. Obrigado!...mas estou sozinho, rodeado por todas as
minhas lembranças.
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De todas
as pessoas que citei e nomeei, mais ninguém! Foram-se todos.
Ontem
levei minha mãe, com seus 92 anos, para um passeio pelo Bexiga, meu filho Marco
Tulio dirigindo:
- Inacio,
onde nós estamos?
- No
Bexiga, mãe. Olha ali, 'tá vendo? Nós morávamos lá onde está aquele prédião...
-
"Não, esse não é o nosso bairro, não 'tou conhecendo nada aqui... Marco,
leva a gente prá casa... Não quero ver mais nada...'tou cansada, 'tou
chateada..."
Paro por
aqui, não vou conseguir continuar escrevendo.
Estou com
frio, muito frio!
Deixo
correr minhas lágrimas de saudade!
por: Joaquim Ignacio
7 comentários:
Ignácio, teus textos chegam a me emocionar de tão bonitos e reais.
Tuas lembranças são bastante características e me levam a um Bixiga que eu conhewci e vivi. A saudades é tanta que chega a doer.
Ignácio!
Deixe correr livremente tuas lágrimas de saudade!
Por aqui, silenciosamente, escorrem as minhas;
pela sensibilidade e delicadeza do texto;
pela viagem ao passado que também vivi;
pela saudade das muitas avós e tias que também tive;
por todos os sentimentos que você conseguiu transmitir
com teu lindo e emotivo texto!
Abraço.
Ah, Joaquim, você é muito mais que bom!. Que facilidade para se expressar e nos fazer viver "seus" momentos queridos (agora revividos). Identifiquei-me em muitas passagens. Nem sempre escrevo comentários mas tenha certeza que o acompanho sempre!
Ignácio,quanta emoção senti ao ler seu texto.Você compartilhou momentos de sua infância tão marcados no seu coração.Por esta razão seu texto é tão belo e puro.Parabéns!
Estive em minha casa do litoral durante algum tempo, acompanhando algumas reformas e acréscimos, razão pela qual parei de postar textos e comentários. Estou de volta e vou recomeçar a escrever meus texticuls (epa!), digo, meus textinhos. Agradeço à boa palavra dos amigos...
Em tempo: Se precisarem construir no litoral, contratem
profissionais de São Paulo, porque os caiçaras, ai meu Deus...
Ignacio
Uma curiosidade: o "sobrado" à direita da ilustração, pertenceu à uma parenta da Odete, d. Maria Cândida de Souza, gente de Patrocínio do Sapucaí, uma cidadezinha em acrópole colada à Franca do Imperador do Capim Mimoso. D. Maria Cândida, em São Paulo, morou na Ruy Barbosa e tinha casa no "vilão" (hoje Travessa dos Arquitetos)e acabou trocando a propriedade pelo sobradão da foto,a célula mater do Teatro Ruth Escobar. Não me perguntem que rolo fizeram, como perderam a posse do imóvel que eu não faço a mínima idéia; imagin que ela tenha feito algum tipo de doação porque existe ou existiu um Centro Cultural Maria Cândida de Souza...
Tudo conjecturas...
Ignacio
JOCA:
Coisa mais gostosa este teu texto.
Veio à minha cabeça tantas lembranças. Principamente o Parque D. Pedro e sua creche.
E lembrar a delícia que era ter muitas avós e mães. Acontecia comigo. Tanto que mais tarde defini essa convivência como "Comandos Paramaternais".
E as doenças, meu Deus?
Doenças epidêmicas Sarampo, Catapora, tosse-comprida, caxumba, etc. Quando algué tinha uma delas, levavam-nos a visitar a criancinha e, depois saíamos para a rua. Diziam que essas doenças encubadas ao ar-livre era mais amena.
Meu amiguinho foi operado às pressas de "nó nas tripas" (apendicite aguda), criancinhas morriam de "caganeira" (desidratação).
As espanholas, portuguêsas e italianas nos benziam de "doença de macaco" (simioto), caxumba, "cobreiro","buxo-virado" (falta de apetite e males gástro-intestinais)
Dueña Ernestina nos benzia quando percebia que estávamos com mau-olhado e quando estávamos "meio caidaços", sem vontade prá nada, levavam-nos a Mãe Aparecida que, em três tempos, rezando em Nagô, mandava embora o Banzo e todas as "ziká" (ziquiziras), os encostos, os mal-feitos.
Saudade! Tempos em que, acima de tudo, vivíamos de Esperança. Esperança tão forte que, até os placebos causavam melhor resultados que o remédio.
Gostei demais.
Abração,
Natale
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