imagem: Hospital das Clínicas da FMUSP
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"Juca, chegou sua hora; vai descansar na Sala de Material; o Valdomiro
bolou um esquema, fez uma caminha com umas caixas de soro, já tem um lençol e
uma manta lá..., vai que a gente segura os pepinos...tem uma térmica com chá e
outra com café, tem uma cesta com pão com margarina...
3 horas
da manhã, meu colega, com o rosto estremunhado, com o sono ainda restando, vem
me substituir nos cuidados com os pacientes, graças a Deus.
Estou me
segurando.
Nó na
garganta, as lágrimas quase aflorando.
Vou para
o banheiro fumar.
Queimo
dois cigarros em poucos minutos. Não vou para o 'repouso', vou passar a minha
hora no terraço olhando a escuridão...
Hospital
das Clínicas da FMUSP, 22:00h, Clínica de Neurologia, 5º andar
Hora de
assumir meu plantão, e não sei para qual função vou ser designado.
Esperar.
Passagem
de plantão, Enfermaria após enfermaria, leito após leito, a procissão de
Enfermagem se desloca pelo corredor da ala norte, as Enfermeiras Encarregadas à
frente, seguidas pelas Enfermeiras de Cabeceira recém formadas e ainda
aprendendo, e nós, arraia miuda, estivadores, fechando o grupo dos que estão
entrando e dos que estão saindo...
A
passagem do plantão dura, em média, 20 minutos; em seguida vem a distribuição
das tarefas para a noite. "Fulana e Beltrano na Medicação, Cicrano nos
sinais vitais e no controle de gotejamento dos soros, a Fulaninha, grávida,
fica no Encaminhamento quando necessário, ou em alguma troca ou banho até
00:00h...".
Quem está
saindo, faz um relatório verbal, sucinto, a respeito das condições dos
pacientes sob sua responsabilidade. Exemplifico:
Luis (um
colega):
- O
paciente do leito 11...
Enfermeira:
-
"Seu" Luis, o paciente não tem nome? Por acaso ele entrou em óbito ou
está comatoso?, o nome dele não está na papeleta?
-
Desculpe, Enfermeira: (retoma o relatório verbal)... O paciente do leito 11,
Sr. Francisco, está lúcido, mantém diálogo lógico, aparenta moral elevado, está
atento, orientado no tempo e no espaço, normotenso, normotérmico, anictérico,
necessita de auxílio para exoneração fecal, diurese por Folley, deambula apenas
com auxílio, recebe eletrólitos por flebo em membro superior direito, em jejum
para craniotomia às 7:00h...
Comigo
aconteceu o que eu mais temia:
- ...o
"Seu" Joaquim vai ficar com as crianças da neuropediatria, cuidados
gerais!
Vou ter
que encarar alguns casos de Coréia, Doença de Wilson, hidrocefalia e o caso de
duas recém nascidas, siamesas, unidas pela região occipital... Bem, para ser
mais exato, já que eu quero falar de um plantão específico, vale uma
explicação: naquela ocasião as siamesas já tinham sido separadas e uma delas
evoluira para óbito na UTI de Neurocirurgia, de maneiras que eu iria cuidar da
sobrevivente.
Sinceridade?
Nenhuma hipocrisia? Nada de falso heroismo e desprendimento? Pois bem: em minha
opinião (que, afinal, não contava no frigir dos ovos) a gestação tubária,
teratogênica, daquelas crianças deveria ter sido interrompida quando do
primeiro ultrassom, mas quem sou eu, o que é que eu sei das coisas? Eu não sou
e nem era santo, não posso e nem podia interferir na evolução dos
acontecimentos...
01,
01:30h da madrugada, chamo o plantonista; a criança pós-operada, apesar de
entubada, está lutando contra o respirador 'bird' e, além do mais, está febril,
39ºC...
-
(Médico)...essa febre é do SNC, condição neurológica, não há muito o que fazer.
Vou acertar o ritmo do respirador e vamos fazer um X de tórax prá ver como
estão os pulmõezinhos e, só depois, tomar conduta...
- Vou
chamar o pessoal da gasoterapia; não dá prá desconectar do bird...
- É
mesmo!...chama, chama..., diz que é urgência, caso importante..., vou preencher
a requisição...
Como
ninguém atendia ao telefone da gaso, desci aos infernos dos subterrâneos do HC
para ver o que estava acontecendo e deixei o médico e as enfermeiras procurando
acertar o ritmo e as misturas gasosas do bird, situação crítica!
Quando
voltei para a clínica com os técnicos e o respirador portátil, pelo menos uma
parte de nossos problemas começaram a ser resolvidos e conseguimos começar a
descer para a radiologia. Não podíamos ficar muito tempo fora de um ambiente
controlado, claro e nem pedir que um técnico em raio X subisse para a Neuro com
um equipamento portátil. O tempo era importante!; no entanto, já no elevador, a
criança começou a convulsionar...:
- Essa
criança está parando! Está parando! Vai parar com a gente... Vamos descer no
PS... Precisamos espaço...
Saimos
para o corredor do PS com a criança parada... Começamos a tentar a
ressuscitação massageando seu peito com a ponta de dois dedos.
Formou-se
um circulo em torno do berço.
Algumas
colegas começaram a rezar em voz alta, enquanto outras pediam que chamassem o
capelão, outras choravam...
Um
professor do PS foi chamado e chegou assumindo os procedimentos:
- 'Tá
bom, 'tá bom...já fizeram sua parte, já chega!já chega! É muito sofrimento,
chega!...chega! Vamos deixar a natureza seguir seu cuso... eu assumo daqui...
**********
Estou
olhando para a escuridão; acendo cigarro após cigarro...
Finalmente
amanhece. O ambiente na ala norte está alegre e triste ao mesmo tempo, se é que
me entendem.
Fim de um
sofrimento.
Das
meninas e nosso, nós profissionais...
Passamos
o plantão para o grupo que entrava.
Procissão
pelo corredor.
Leito
"fechado" na Neuropediatria.
11:00h da
manhã, tomo um banho demorado e começo a me preparar para pegar plantão no
Hospital Iguatemi. Faço um lanche/almoço rápido. A Odete já está trabalhando em
seu Salão de Cabeleireiro que está com algumas clientes. Uma delas, ao me ver,
sorri:
- Eh,
'seu' Ignacio... Tenho inveja do senhor... Trabalho leve, um curativo aqui, uma
injeçãozinha ali, roupa branca... vocês ficam tão bonitos de branco... se eu
fosse enfermeira iria trabalhar com criança... adoro crianças...
- Que
bom, que bom...porque você não faz o curso?... serviço não falta... bem, 'tou
indo... até logo, senhoras... tchau Odete!
- Vai com
Deus...
- Amem!
Por Joaquim Ignacio de
Souza Netto