Imagens extraídas da internet: A fazendinha (antes e depois)
Os
outros 50% de São Paulo que me perdoem, mas falar da Zona Leste devemos,
necessariamente, falar do Parque São Jorge.
Comecei
com Vandré, continuo com Vinicius, quem sabe a inspiração dos dois juntos faça
com que eu escreva alguma coisa boa.
Quase
todo santo domingo era o mesmo roteiro. Sair do Jardim América, de banho tomado
e café bebido, lá pelas 7 h da manhã. Pegar um sonolento ônibus até o
Anhangabaú, correr até a Praça Clovis, embarcar num bonde, preferencialmente
aberto, pois assim dava para, pelo menos, protelar o pagamento da passagem ou
tentar enganar o cobrador (você já foi expulso do bonde? Saindo correndo pela
Celso Garcia e esperar o próximo).
Vencer
a Rangel Pestana era um pulo; já a Celso Garcia demorava um pouco mais e eu,
impaciente, não via a hora do bonde virar à esquerda e entrar na Rua São Jorge.
É
certo que toda vez eu via à igreja da Penha, imaginava os mistérios que haviam
do lado de lá, depois da colina. Um dia eu iria descobrir, um dia descobri, mas
fiquemos por aqui, não quero criar atritos com a Silvia sobre o que havia do
lado de lá. O que me interessa é a Rua São Jorge, 777, que as más línguas
identificavam como Avenida Marginal sem número.
Minha
maleta a tiracolo. A carteirinha de sócio com o dedão disfarçadamente
encobrindo o recibo do mês anterior, com dificuldade pago e por mim, claro, valendo
para este mês.
Passada
mais esta aventura, corria eu para o vestiário dos sócios, que ficava embaixo
das arquibancadas do estádio, e ia me trocar para jogar bola.
É
certo que, quando os portões do estádio estavam abertos, era sinal de que
haveria jogo do infantil e do juvenil e com isso eu atrasava um pouco o meu
futebol e assim, pude ver um japonês, Sergio Echigo, hoje no Japão, dar um
drible chamado elástico, tão consagrado pelo Rivelino.
Mas,
o mais importante, quando não tinha jogo, lá ia eu para o terrão, um campo onde
jogavam uns 34 de cada lado e onde quase sempre havia um espião do clube para
ver quem se saia melhor e seria convidado para vir na terça-feira, participar
da peneira.
Grande
injustiça daquele cara. Para mim, a terça-feira nunca chegou. E olha que,
quando entrava no campo, eu me dedicava ao máximo, nem me importando se ninguém
passava a bola ou só queria ficar com ela. Quando a bola chegava aos meus pés,
eu a tratava com o maior carinho e respeito, dava a melhor cobertura, o passe
mais preciso e até, por que não (zombem se quiserem), fazer algum gol. Eu me
postava como líbero. Espelhava-me em José Carlos Bauer, jogador de infinita
categoria, espelhava-me no Beckenbauer, por sua elegância, sua classe, até na
sua camisa branca da seleção alemã (só não gostava, como ainda não gosto, quando
a Alemanha joga de verde). Independente de quem jogava, ou como jogava, eu
fazia o melhor. Por que não? Eu era o famoso Zéquenbauer.
Mas,
a fome chegava e meu farto almoço de domingo era pão com mortadela e um guaraná
caçula, encostado nos alicerces do Ginásio do Corinthians, que um dia, diziam,
iria ser erguido. E não é que foi?
Às
vezes, quando o Corinthians jogava no Parque São Jorge, ou até no Pacaembu,
dava para ver os jogadores que se concentravam no clube. Aí, meu espírito de
moleque aflorava ainda mais e, com um
pouco de sorte, dava para ficar ombro a ombro com alguns deles. Ombro a ombro é
modo de dizer, no máximo seria ombro a cintura e olhe lá!
Quando
tinha jogo no Parque íamos assistir, ou então, voltávamos ao nosso campão para
mais uma tarde de futebol e sol. Muito sol e pouco futebol.
À
tardinha, meio esfolado, inteiramente estropiado, voltava para casa. Ia até a
Celso Garcia, pegar o ônibus e, sem querer, dava uma olhada para a igreja da
Penha. Qualquer dia eu descubro o que tem do lado de lá, pensava. (Se a Silvia
ler, ela me mata).
A
volta para casa era meio truncada. Parava no Brás para passar na casa da minha
avó ou então, pasmem, parava no Largo da Concórdia, no velho Largo da
Concórdia, passear na feirinha que havia por lá e... Comer melancia.
Chegava
em casa, contava as vantagens e recebia os curativos de sempre e me preparava
para mais uma semana de tédio, até chegar o próximo domingo.
Em
outras ocasiões, eu parava na casa da querida tia Cida e do Tio Alfredo que
moravam na Rua do Tatuapé, e saboreava o almoço, às vezes a janta e nem sei
quantas vezes até o café da manhã do dia seguinte. Meus quatro primos, os
quatro homens juntos como eu chamava, partilhavam também o clube, se bem que
eles já tinham seu armário próprio, iam à piscina e tinham outras atividades de
atletas e de ricos. Tão ricos que até hoje tenho primo no remo máster do Corinthians.
Por falar em remo, quantas e quantas vezes não víamos a regata no Rio Tiete,
com os atletas carregando seus barcos na rua, atrás do campo de futebol, onde
hoje passam a cem por horas carros e caminhões.
Na
velha fazendinha vi muitos jogos. Toda estréia de campeonato estavam lá os dois
irmãos, tios Alfredo e Henrique. Ambos em seus lugares prediletos. De pé, no
começo da velha arquibancada do gol dos fundos. Vi a inauguração dos
refletores, naqueles 7 a 2 contra o Flamengo; vi uma Ferroviária com Dudu,
Bazzani e outros infernizarem e vi, sobretudo aquele Corinthians e Santos, onde
meu pai bateu o recorde de 3 horas e meia sem fumar, por total e incompleta
impossibilidade de mexer um braço sequer, e a infelicidade de ver um gesto
que me lembro até hoje.
“Placar
1 a 0 para o Corinthians “, muitos anos de tabu e a bola veio para perto de
onde estávamos. Um gaiato ao lado, gritou para o Ari Clemente, um lateral
esquerdo com 30 metros de largura por outro tanto de altura: “Quebra o Ne...(Afrão,
se não podem me prender ), Ari”. Ouvindo isso, o Pelé pôs as duas mãos
espalmadas para baixo como dizendo, espera, espera. E não tivemos que esperar
muito. Ele deu um passe pro Coutinho marcar e depois fez um gol, ou foi o
contrário, sei lá. O certo é que no segundo gol e Cri... ( Afrão, novamente ),
veio até perto de nós, deu aquele soco no ar e, só nos restava tentar matar o
torcedor que tinha falado aquela besteira.
Esse
mágico período durou pelo menos uns bons sete ou oito anos.
Outros
caminhos foram surgindo. A Fazendinha se remodelou, o ginásio está de pé, eu
continuo sócio, o Alexandre, meu filho, desde seus dois meses de idade, também.
Foram-se os tios, ficaram os primos com os quais curtimos muitas garrafas de
vinho juntos e muitas ainda iremos curtir. Foi-se o campão, o atleta que eu
nunca fui se aposentou; só me resta agora, humildemente, terminar o texto como
o Vinicius ensinou.
A
bênção tia Cida, pelos fartos almoços e lençóis sempre limpos; a bênção tio
Henrique por aquele 6 de fevereiro de 55 que eu só fui entender muito tempo
depois; a bênção Ademir da Guia ( sim, Ademir da Guia, ) que vi jogar no
juvenil do Bangu, numa tarde no Parque São Jorge; a bênção Idário, jogador
antigo, espanhol brioso, que não sabia o que era perder sem verter um pouco de
“sangre el la arena del juego”; a bênção moças e senhoras do Memórias de Sampa
por este texto tão desinteressante para vocês;
a bênção dias ensolarados que coloriram minha juventude; a bênção Zona Leste, pouco falei de você, mas que este
sonho me deu; a bênção Dona Aida, minha mãe, senhora das broncas e dos
curativos, muito mais destes do que daquelas; a bênção Sr José, meu pai, mentor
e provedor do meu crescimento e que deixava sempre a caixa registradora da
mercearia aberta para que eu pegasse o que precisasse (e que depois de muito
tempo me contou que fazia sinal para o porteiro do Pacaembu, para que eu não
pudesse entrar naquele São Paulo 3 a 1 em 1957 ); a bênção querida Silvinha,
que me aguardava com todo seu amor enquanto eu fazia minhas estripulias e
enfeixando tudo; a bênção tio Alfredo, mestre primeiro nas minhas andanças
profissionais, mestre primeiro para me chamar para assistir jogos de futebol e
cuja assinatura até decorei por tantos empréstimos que me fez e que, graças a
Deus, pude pagar.
A
bênção a todos, amigos e rivais, amigos e adversários, amigos e gozadores.
Maior que todos e de tudo, maior que as paixões, os encontros e desencontros há
a felicidade de nos sabermos todos juntos e todos iguais. A bênção, a bênção
Saravá.
Sarava.
Por
José Carlos Munhoz Navarro
12 comentários:
Zé, lindo texto!
Acho que para ficar perfeito ficou faltando apenas um pedido de benção a0o senhor Deus por ter lhe dado a inspiração e habilidade incalculável de escrevertextos deste nível.
Parabéns amigo!
Navarro, gostei muito de ler seu texto, principalmente porque lembra meu pedacinho de chão que é o bairro da Penha de França e da Igreja da Penha.Que Deus te abençoe pelas lindas lembranças que você tão carinhosamente compartilhou com todos nós, Um grande abraço.
Navarro, gostei muito de ler seu texto, principalmente porque lembra meu pedacinho de chão que é o bairro da Penha de França e da Igreja da Penha.Que Deus te abençoe pelas lindas lembranças que você tão carinhosamente compartilhou com todos nós, Um grande abraço.
Sempre gostei de seus textos, e sinto muitas saudades deles, ainda mais quando como esse, eles vêm com as lembranças da querida fazendinha, do Corinthians dos tempos do velho charutão sempre bem aceso nas vitórias do nosso Timão. Só lamento não poder ler suas preciosos e bem narradas historias pelo menos uma vez por semana, nem vou dizer parabéns, vou sim dizer muito obrigado Mestre Navarro.
Olá, José Carlos!
Através de suas lembranças, pudemos conhecer um pouco mais de sua própria história e da história da Fazendinha Corinthians.
Agradeço pela parte que me toca, quanto à benção das moças e senhoras do Memórias de Sampa!
Que Deus o abençoe!
Obrigada.
Muita paz!
.
Navarro!
Que deliciosas memórias! De um tempo em que uma das maiores preocupações era esperar a chegada do próximo domingo para jogar futebol no "velho campão" do Corinthians! E em meio a essas memórias, com algumas pinceladas da própria história do Timão, outras de mistério... afinal, o que existe do outro lado da Igreja da Penha?!
Abraço
.
Ai ai ai, Silviaaaaa, você descobriu? kkk Se souber nos conte (((risos))).
José Carlos, você abriu seu coração num texto pleno de saudosismo, respeito e muita emoção.
Sobre seu pedido: "a bênção moças e senhoras do Memórias de Sampa por este texto tão desinteressante" , tenho a lhe sugerir que retire o prefixo "des" em desinteressante e, a partir daí, o abençoaremos com todas as prerrogativas que você merece.
Abraço,
Ai ai ai, Silviaaaaa, você descobriu? kkk Se souber nos conte (((risos))).
José Carlos, você abriu seu coração num texto pleno de saudosismo, respeito e muita emoção.
Sobre seu pedido: "a bênção moças e senhoras do Memórias de Sampa por este texto tão desinteressante" , tenho a lhe sugerir que retire o prefixo "des" em desinteressante e, a partir daí, o abençoaremos com todas as prerrogativas que você merece.
Abraço,
Navarro, sua crônica-histórica sugere uma releitura de anos passados no P. São Jorge, quando, em companhia de meu irmão, cabulávamos o Grupo Escolar Romão Puigari, pra nos refrescar na "piscina" do Corinthians, (a beira do rio Tiete, com câmaras de pneu pra proteger os banhistas. Bons tempos, aqueles, né?
José seu texto é um primor de escrita, principalmente a nós, que vivenciamos a época e os lugares. Agora, atraz da igreja da Penha, eu sei o que tinha. não vou falar por que senão vou estragar sua surpres. Parabéns, Navarro.
Laruccia
Primo Zé
Afinal é assim que eu te conheço. O que posso dizer mais sobre este relato. Imagina minha ansiedade para ler tudo rapidamente e saborear sua sabedoria e sua sensibilidade. Deus te abençoe meu caro. Continue a me fazer chorando....de alegria ! Parabens!
Navarro, parabéns por mais este belo texto, pleno de saudade e boas lembranças, abraços, Nelinho.
Nem preciso falar que chorei lendo o texto né? Memórias como essas deveriam sem compartilhadas SEMPRE, e principalmente, nessa forma linda que você sabe contar.
Conta mais, Zé!
Beijos!
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