quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Pra não dizer que não falei da Zona Leste


Imagens extraídas da internet: A fazendinha (antes e depois)
Os outros 50% de São Paulo que me perdoem, mas falar da Zona Leste devemos, necessariamente, falar do Parque São Jorge.
Comecei com Vandré, continuo com Vinicius, quem sabe a inspiração dos dois juntos faça com que eu escreva alguma coisa boa.
Quase todo santo domingo era o mesmo roteiro. Sair do Jardim América, de banho tomado e café bebido, lá pelas 7 h da manhã. Pegar um sonolento ônibus até o Anhangabaú, correr até a Praça Clovis, embarcar num bonde, preferencialmente aberto, pois assim dava para, pelo menos, protelar o pagamento da passagem ou tentar enganar o cobrador (você já foi expulso do bonde? Saindo correndo pela Celso Garcia e esperar o próximo).
Vencer a Rangel Pestana era um pulo; já a Celso Garcia demorava um pouco mais e eu, impaciente, não via a hora do bonde virar à esquerda e entrar na Rua São Jorge.
É certo que toda vez eu via à igreja da Penha, imaginava os mistérios que haviam do lado de lá, depois da colina. Um dia eu iria descobrir, um dia descobri, mas fiquemos por aqui, não quero criar atritos com a Silvia sobre o que havia do lado de lá. O que me interessa é a Rua São Jorge, 777, que as más línguas identificavam como Avenida Marginal sem número.
Minha maleta a tiracolo. A carteirinha de sócio com o dedão disfarçadamente encobrindo o recibo do mês anterior, com dificuldade pago e por mim, claro, valendo para este mês.
Passada mais esta aventura, corria eu para o vestiário dos sócios, que ficava embaixo das arquibancadas do estádio, e ia me trocar para jogar bola.
É certo que, quando os portões do estádio estavam abertos, era sinal de que haveria jogo do infantil e do juvenil e com isso eu atrasava um pouco o meu futebol e assim, pude ver um japonês, Sergio Echigo, hoje no Japão, dar um drible chamado elástico, tão consagrado pelo Rivelino.
Mas, o mais importante, quando não tinha jogo, lá ia eu para o terrão, um campo onde jogavam uns 34 de cada lado e onde quase sempre havia um espião do clube para ver quem se saia melhor e seria convidado para vir na terça-feira, participar da peneira.
Grande injustiça daquele cara. Para mim, a terça-feira nunca chegou. E olha que, quando entrava no campo, eu me dedicava ao máximo, nem me importando se ninguém passava a bola ou só queria ficar com ela. Quando a bola chegava aos meus pés, eu a tratava com o maior carinho e respeito, dava a melhor cobertura, o passe mais preciso e até, por que não (zombem se quiserem), fazer algum gol. Eu me postava como líbero. Espelhava-me em José Carlos Bauer, jogador de infinita categoria, espelhava-me no Beckenbauer, por sua elegância, sua classe, até na sua camisa branca da seleção alemã (só não gostava, como ainda não gosto, quando a Alemanha joga de verde). Independente de quem jogava, ou como jogava, eu fazia o melhor. Por que não? Eu era o famoso Zéquenbauer.
Mas, a fome chegava e meu farto almoço de domingo era pão com mortadela e um guaraná caçula, encostado nos alicerces do Ginásio do Corinthians, que um dia, diziam, iria ser erguido. E não é que foi?
Às vezes, quando o Corinthians jogava no Parque São Jorge, ou até no Pacaembu, dava para ver os jogadores que se concentravam no clube. Aí, meu espírito de moleque aflorava ainda mais e, com  um pouco de sorte, dava para ficar ombro a ombro com alguns deles. Ombro a ombro é modo de dizer, no máximo seria ombro a cintura e olhe lá!
Quando tinha jogo no Parque íamos assistir, ou então, voltávamos ao nosso campão para mais uma tarde de futebol e sol. Muito sol e pouco futebol.
À tardinha, meio esfolado, inteiramente estropiado, voltava para casa. Ia até a Celso Garcia, pegar o ônibus e, sem querer, dava uma olhada para a igreja da Penha. Qualquer dia eu descubro o que tem do lado de lá, pensava. (Se a Silvia ler, ela me mata).
A volta para casa era meio truncada. Parava no Brás para passar na casa da minha avó ou então, pasmem, parava no Largo da Concórdia, no velho Largo da Concórdia, passear na feirinha que havia por lá e... Comer melancia.
Chegava em casa, contava as vantagens e recebia os curativos de sempre e me preparava para mais uma semana de tédio, até chegar o próximo domingo.
Em outras ocasiões, eu parava na casa da querida tia Cida e do Tio Alfredo que moravam na Rua do Tatuapé, e saboreava o almoço, às vezes a janta e nem sei quantas vezes até o café da manhã do dia seguinte. Meus quatro primos, os quatro homens juntos como eu chamava, partilhavam também o clube, se bem que eles já tinham seu armário próprio, iam à piscina e tinham outras atividades de atletas e de ricos. Tão ricos que até hoje tenho primo no remo máster do Corinthians. Por falar em remo, quantas e quantas vezes não víamos a regata no Rio Tiete, com os atletas carregando seus barcos na rua, atrás do campo de futebol, onde hoje passam a cem por horas carros e caminhões.
Na velha fazendinha vi muitos jogos. Toda estréia de campeonato estavam lá os dois irmãos, tios Alfredo e Henrique. Ambos em seus lugares prediletos. De pé, no começo da velha arquibancada do gol dos fundos. Vi a inauguração dos refletores, naqueles 7 a 2 contra o Flamengo; vi uma Ferroviária com Dudu, Bazzani e outros infernizarem e vi, sobretudo aquele Corinthians e Santos, onde meu pai bateu o recorde de 3 horas e meia sem fumar, por total e incompleta impossibilidade de mexer um braço sequer, e a infelicidade de ver um gesto que  me lembro até hoje.
“Placar 1 a 0 para o Corinthians “, muitos anos de tabu e a bola veio para perto de onde estávamos. Um gaiato ao lado, gritou para o Ari Clemente, um lateral esquerdo com 30 metros de largura por outro tanto de altura: “Quebra o Ne...(Afrão, se não podem me prender ), Ari”. Ouvindo isso, o Pelé pôs as duas mãos espalmadas para baixo como dizendo, espera, espera. E não tivemos que esperar muito. Ele deu um passe pro Coutinho marcar e depois fez um gol, ou foi o contrário, sei lá. O certo é que no segundo gol e Cri... ( Afrão, novamente ), veio até perto de nós, deu aquele soco no ar e, só nos restava tentar matar o torcedor que tinha falado aquela besteira. 
Esse mágico período durou pelo menos uns bons sete ou oito anos.
Outros caminhos foram surgindo. A Fazendinha se remodelou, o ginásio está de pé, eu continuo sócio, o Alexandre, meu filho, desde seus dois meses de idade, também. Foram-se os tios, ficaram os primos com os quais curtimos muitas garrafas de vinho juntos e muitas ainda iremos curtir. Foi-se o campão, o atleta que eu nunca fui se aposentou; só me resta agora, humildemente, terminar o texto como o Vinicius ensinou.
A bênção tia Cida, pelos fartos almoços e lençóis sempre limpos; a bênção tio Henrique por aquele 6 de fevereiro de 55 que eu só fui entender muito tempo depois; a bênção Ademir da Guia ( sim, Ademir da Guia, ) que vi jogar no juvenil do Bangu, numa tarde no Parque São Jorge; a bênção Idário, jogador antigo, espanhol brioso, que não sabia o que era perder sem verter um pouco de “sangre el la arena del juego”; a bênção moças e senhoras do Memórias de Sampa por este texto tão desinteressante para vocês;  a bênção dias ensolarados que coloriram minha juventude; a bênção  Zona Leste, pouco falei de você, mas que este sonho me deu; a bênção Dona Aida, minha mãe, senhora das broncas e dos curativos, muito mais destes do que daquelas; a bênção Sr José, meu pai, mentor e provedor do meu crescimento e que deixava sempre a caixa registradora da mercearia aberta para que eu pegasse o que precisasse (e que depois de muito tempo me contou que fazia sinal para o porteiro do Pacaembu, para que eu não pudesse entrar naquele São Paulo 3 a 1 em 1957 ); a bênção querida Silvinha, que me aguardava com todo seu amor enquanto eu fazia minhas estripulias e enfeixando tudo; a bênção tio Alfredo, mestre primeiro nas minhas andanças profissionais, mestre primeiro para me chamar para assistir jogos de futebol e cuja assinatura até decorei por tantos empréstimos que me fez e que, graças a Deus, pude pagar.
A bênção a todos, amigos e rivais, amigos e adversários, amigos e gozadores. Maior que todos e de tudo, maior que as paixões, os encontros e desencontros há a felicidade de nos sabermos todos juntos e todos iguais. A bênção, a bênção Saravá.
Sarava.

Por José Carlos Munhoz Navarro

12 comentários:

Miguel S. G. Chammas disse...

Zé, lindo texto!
Acho que para ficar perfeito ficou faltando apenas um pedido de benção a0o senhor Deus por ter lhe dado a inspiração e habilidade incalculável de escrevertextos deste nível.
Parabéns amigo!

m disse...

Navarro, gostei muito de ler seu texto, principalmente porque lembra meu pedacinho de chão que é o bairro da Penha de França e da Igreja da Penha.Que Deus te abençoe pelas lindas lembranças que você tão carinhosamente compartilhou com todos nós, Um grande abraço.

margarida disse...

Navarro, gostei muito de ler seu texto, principalmente porque lembra meu pedacinho de chão que é o bairro da Penha de França e da Igreja da Penha.Que Deus te abençoe pelas lindas lembranças que você tão carinhosamente compartilhou com todos nós, Um grande abraço.

Arthur Miranda - tutu disse...

Sempre gostei de seus textos, e sinto muitas saudades deles, ainda mais quando como esse, eles vêm com as lembranças da querida fazendinha, do Corinthians dos tempos do velho charutão sempre bem aceso nas vitórias do nosso Timão. Só lamento não poder ler suas preciosos e bem narradas historias pelo menos uma vez por semana, nem vou dizer parabéns, vou sim dizer muito obrigado Mestre Navarro.

Soninha disse...

Olá, José Carlos!

Através de suas lembranças, pudemos conhecer um pouco mais de sua própria história e da história da Fazendinha Corinthians.
Agradeço pela parte que me toca, quanto à benção das moças e senhoras do Memórias de Sampa!
Que Deus o abençoe!
Obrigada.
Muita paz!

Zeca disse...

.

Navarro!

Que deliciosas memórias! De um tempo em que uma das maiores preocupações era esperar a chegada do próximo domingo para jogar futebol no "velho campão" do Corinthians! E em meio a essas memórias, com algumas pinceladas da própria história do Timão, outras de mistério... afinal, o que existe do outro lado da Igreja da Penha?!

Abraço

.

Cida disse...

Ai ai ai, Silviaaaaa, você descobriu? kkk Se souber nos conte (((risos))).
José Carlos, você abriu seu coração num texto pleno de saudosismo, respeito e muita emoção.
Sobre seu pedido: "a bênção moças e senhoras do Memórias de Sampa por este texto tão desinteressante" , tenho a lhe sugerir que retire o prefixo "des" em desinteressante e, a partir daí, o abençoaremos com todas as prerrogativas que você merece.
Abraço,

Cida disse...

Ai ai ai, Silviaaaaa, você descobriu? kkk Se souber nos conte (((risos))).
José Carlos, você abriu seu coração num texto pleno de saudosismo, respeito e muita emoção.
Sobre seu pedido: "a bênção moças e senhoras do Memórias de Sampa por este texto tão desinteressante" , tenho a lhe sugerir que retire o prefixo "des" em desinteressante e, a partir daí, o abençoaremos com todas as prerrogativas que você merece.
Abraço,

Laruccia disse...

Navarro, sua crônica-histórica sugere uma releitura de anos passados no P. São Jorge, quando, em companhia de meu irmão, cabulávamos o Grupo Escolar Romão Puigari, pra nos refrescar na "piscina" do Corinthians, (a beira do rio Tiete, com câmaras de pneu pra proteger os banhistas. Bons tempos, aqueles, né?
José seu texto é um primor de escrita, principalmente a nós, que vivenciamos a época e os lugares. Agora, atraz da igreja da Penha, eu sei o que tinha. não vou falar por que senão vou estragar sua surpres. Parabéns, Navarro.
Laruccia

Mauricio (primo) disse...

Primo Zé
Afinal é assim que eu te conheço. O que posso dizer mais sobre este relato. Imagina minha ansiedade para ler tudo rapidamente e saborear sua sabedoria e sua sensibilidade. Deus te abençoe meu caro. Continue a me fazer chorando....de alegria ! Parabens!

Leonello Tesser (Nelinho) disse...

Navarro, parabéns por mais este belo texto, pleno de saudade e boas lembranças, abraços, Nelinho.

Carol (filha do primo rico (?) de Itatiba. rs) disse...

Nem preciso falar que chorei lendo o texto né? Memórias como essas deveriam sem compartilhadas SEMPRE, e principalmente, nessa forma linda que você sabe contar.
Conta mais, Zé!

Beijos!