Texto sem edição
De mãos dadas com minha mãe, iniciamos um ligeiro
passeio. Ligeiro na concepção do tempo corrido na época... Hoje, com a
nostalgia que esse momento me atinge, não foi nem simples nem tão rápido
assim... Para minha querida mãe, a alegria muito, muito, mas muito natural para
uma dona de casa muito esperta, zelosa, concisa em seus deveres de
administradora de um lar com nove filhos, onde seu cansaço só se manifestaria
nos últimos anos de vida... Doenças, então, ela não tinha tempo para estas
coisas. Me digam vocês, queridas leitoras, que mulher, no mundo de ontem, de
hoje e de amanhã, que não sentem, por pequeno que seja, um prazer em ir às
compras, mesmo que não seja nada para ela?
Ex-tecelã, operária da fábrica de tecidos
Matarazzo, localizada em frente a nossa casa, cuja estrutura de alvenaria se
mantém até hoje, ocupando um quarteirão quase completo, flanqueada pelas ruas
Fernandes Silva, Monsenhor Andrade, Assumpção e da Alfândega. Minha mãe
trabalhou em tempo integral, em uma época de exploração férrea do operariado,
sem as benesses de uma CLT a ser aplicada. Felícia sai com seu filho Modesto,
dez anos, sétimo de uma prole de nove, da Rua da Alfândega, 197, no Brás,
atinge a Rua do Gasômetro com a única preocupação sobre o que irá comprar.
O garoto Modesto vai olhando os edifícios da Rua do
Gasômetro, gravando na memória, casa por casa, sobradões, um palacete encimando
o antigo cinema Glória, com seus três arcos na entrada. Passando pelo palacete
na esquina da Rua do Lucas, um pouco mais adiante, à esquerda, os muros
facilmente identificáveis do gasômetro (muros que se mantêm em pé até hoje)
onde eram despejados o carvão “coke”, trazidos pelo trenzinho liliputiano que
vinha da estação do Pari, depois de passar por toda a Rua Sta. Rosa. O carvão
coke, vindo da Inglaterra, era utilizado na transformação em gás. Nos portões
escancarados pela entrada do “trenzinho”, a mamãe Felícia parava, um pouco,
para o Tistininho (apelido do Modesto) poder apreciar a operação. A poesia
inebriante estava no despejo do carvão do vagão, nas caldeiras fumegantes.
Seguro nos trilhos, depois do desengate, o vagão, em uma posição estratégica,
era entornado nas caldeiras, o que deixava o Modesto de boca aberta, retendo o
andar de sua mãe, tal atração que a manobra exercia sobre ele. Era, realmente,
um brinquedo encantador.
Essas informações eram armazenadas na memória do
garoto, cheio de fantasias, vislumbrava invasões de foguetes interplanetários
que, de imediato, sairiam dos fornos, movidos por retropropulsoras em busca do
inimigo, no planeta Mong, reduto do vilão, Ming, desafeto do Flash Gordon. Para
sua decepção, no meio de uma fumaceira estonteante, saia um homem, baixinho, de
macacão, todo tingido do negro carvão, o rosto totalmente carvoeiro, onde só o
branco dos olhos e dos dentes brilhavam na negritude do perfil. Mamãe Felícia,
satisfazendo a curiosidade do garoto, puxava-o pelas mãos, pois, por vontade
dele, ficariam ali, a manhã toda.
Seguindo em frente, atravessando a Rua das
Figueiras, sempre na Gasômetro, a sua direita, contra um céu azul, límpido e
prazeroso, erguido no início do século XX, o majestoso Palácio das Indústrias,
construção exótica em estilo mourisca\ toscana, com vários, pequenos e médios
monumentos, relevos motivados por cenas do desenvolvimento da indústria
paulista. A entrada do palácio, a sua esquerda, um espelho d’água, com
peixinhos coloridos, ladeados por monumentos alegóricos, uma alegria para os
olhos dos que por ali passam.
Em frente às escadarias de entrada do Palácio,
distando 70 a 100 metros, com corte da Rua do Gasômetro, separando as duas
unidades, deslumbra-se o bucólico e verdejante Parque D. Pedro II, reduto dos
passeios, lazeres, piqueniques, namoricos, futebol, crianças de todos os
bairros circunvizinhos do nosso querido Brás. Quanta paz, quietude,
tranquilidade, harmonia, cuja única violência que perigava na área era os
galhos das palmeiras que, vez ou outra, despencavam nas alamedas arborizadas do
nobre reduto. A visão do horizonte paulistano descortinava-se no perfil
majestoso do primeiro e maior edifício do Brasil, o Prédio Martinelli.
Bem na entrada do parque, imponente e belo
monumento enaltecendo o 1º Centenário da Independência do Brasil, em 1922, homenagem
da colônia libanesa. Extraordinário trabalho artístico, com motivos da formação
das primeiras levas da riquíssima colônia libanesa. (Esse monumento encontra-se
na entrada da Rua 25 de Março, visual muito mais atraente do que um hot dog e o
bucolismo do saudoso P. Dom Pedro II terminou quando o mesmo se transformou em
canteiro de obras de outro grande progresso: o metrô).
No caminho para a Rua Gal. Carneiro, ou Ladeira
Gal. Carneiro, como queiram, onde nosso destino era a Joalheria Casa Pastore, a
Confiança, ao Empório Toscano e outras lojas de roupas brancas.
Todos estes trechos percorridos, como falei no
início, resgatados, não na sua totalidade, porém nos principais tópicos, são
recordados com ternura e devoção. Áreas que hoje, inconcebíveis de se permitir
a existência de tais situações, são lenitivos, não saudosos, dos tempos que
passam sem nos alentar da rispidez e rapidez da passagem dos anos.
Por Modesto Laruccia