Manhã fria, garoenta, em São
Paulo, não lembro datas, dia do mês, nada, mas creio que foi em 1978 ou 79 que
se passaram os fatos que de vez em quando vem atazanar meu sossego de
aposentado caraminholando minhas lembranças... tem ocasiões que eu rio dos
acontecidos, mas não é sempre...
Íamos, eu e meu colega Fernando,
começar a desembrulhar o 'pacote' que estava nos esperando no primeiro terço do
túnel do HC; a maca com o corpo estava a uns 20 ou 30 metros da grande porta de
madeira que dava para a Radiologia...
6:40 de la matina, começo da
passagem de plantão na Neurologia. Desço do elevador no 5º andar, vindo do
vestiário. Noto que as colegas que trabalharam à noite, quando me veem, sorriem
e dão um suspiro de alívio, um grande 'ainda bem' ou um 'graças a Deus'.
"Aí tem coisa",
pensei... e tinha!
- Seu Joaquim, tem um 'pacote'
no túnel, logo na entrada, que precisa ser vestido e levado para o pessoal da
Faculdade; evoluiu prá óbito logo no começo da madrugada...
- Desculpe, Enfermeira, mas
porque os colegas do plantão da noite não levaram o corpo? Não tiveram tempo?
- Até que tiveram, mas no meio
do caminho chegou um pedido do Palácio dos Bandeirantes... parece que o
falecido tinha qualquer coisa a ver com algum figurão. Vai para um velório de
bacana não sei onde e o caixão vai sair da Faculdade.Trazer o corpo de
volta?... esquece! Naquela mala - apontou - estão as roupas prá vestir o
cadáver...
- Já vi tudo... posso levar
alguém comigo? Sozinho eu não vou conseguir.
- Leva o Fernando... vocês não
estão sempre juntos?
O Fernando era um colega bem
mais novo que eu, com seus 20 e poucos anos. De formação era Técnico Agrícola,
mas como não conseguia emprego em Getulina, sua cidade natal, veio para São
Paulo, onde prestou alguns concursos públicos e terminou por entrar no HC como
Atendente; totalmente jejuno em Enfermagem, aproveitou muitíssimo bem o mês de
treinamento - cuidados básicos com o paciente acamado e dependente banho de
leito, abordagem e alimentação do paciente, condução do paciente em maca ou
cadeira de rodas, auxílio na deambulação, um rápido curso para exercer a função
de pau para toda obra dentro de um hospital...
- Vamos logo que tem um defunto
esperando a gente no túnel...
- Dá um tempo, Juca, acho que
vou tomar um café e fumar um cigarro e depois a gente vai...
- 'Num' dá, Fernando... Vamos
acabar logo esse parangolé se não vai atrasar tudo, tem os banhos, troca de
lençóis, o café dos pacientes, relatórios ...depois você fuma...!
Nos anos 60s e 70s (não sei como
está a situação hoje) o túnel que liga o HC à Faculdade na Dr. Arnaldo tinha
sua entrada na Radiologia, no 3º andar; uma grande porta de madeira, padrão bem
antigo, solene, era a boca da caverna de horrores.
- Pegou as chaves do túnel?
- Peguei... a Enfermeirona-Chefe
disse que as meninas que trabalharam à noite não teriam força prá preparar o
corpo e...
- 'Tá bom, 'tá bom, 'tá legal...
é muito blábláblá... no duro, no duro, a verdade é que sobrou prá gente... e,
pelo que eu estou vendo, ainda vamos precisar higienizar o corpo... mão de obra
prá c..........!
Começamos a expor o corpo que
estava envolto em dois lençóis:
- "Vamos na manha, não sei
se fizeram um tamponamento decente... pianinho, pianinho... devagar, devagar...
xííí, o defunto já empedrou...vai complicar prá vestir a roupa... vamos dar uma
lavadinha nele e ver cumé que fica esse negócio de terno, gravata, meias,
sapatos...
- Vai vestir a cueca nele?
- Se tiver cueca prá vestir, a
gente veste, uai!...
Afastamos os lençóis e expusemos
o rosto:
-IIIh! Fernandão, não fecharam
os olhos do morto; ele está com as butucas esbugalhadas...
- Deixa eu ver...
- Não olha nos olhos do morto,
não deixa ele te encarar... melhor ir por trás da cabeça e fechar as
pálpebras... vai precisar fazer uma forcinha e prender com micropore...
- 'Tá! Mas porque não posso
olhar os olhos do defunto?
- Superstição, coisas da
Enfermagem... encarar os mortos que estejam com os olhos abertos dá azar... faz
você perder a coragem; amarrar as pontas dos lençóis prá 'segurar' vivos os
terminais; não pronunciar certas palavras na presença de pacientes; começar os
banhos de leito pelos rostos, sacumé, né?... você não precisa acreditar, mas é
bom não abusar nem achar graça nesses procedimentos, vai que...!
- Bobagem, Juca!
- Ah é? Então faz um olho no
olho com o falecido...
- Eu não...
- Não falei?...
Passada a parte mais fácil dos
procedimentos, tratou-se então de vestir o defunto. Sabíamos do complicador que
teríamos com o rigor mortis estabelecido; felizmente existe uma técnica para
vestir a parte superior de um corpo numa situação igual àquela que se
apresentava; essa técnica - ou truque - é executada com certa facilidade por
pessoas com um mínimo de experiência; no entanto, da cintura prá baixo é que a
porca torce o rabo; normalmente é difícil vestir um corpo em estado de rigidez
total e, para complicar tudo, estávamos num subsolo, num túnel estreito,
escuro, frio, sombrio, lúgubre, sem lenço, sem documentos e com um cadáver de
uns 90 kg, seminu ou semi vestido, tanto faz como tanto fez!
Por não conseguirmos manipular o
corpo sobre a maca bastante instável, foi preciso colocar o cadáver em pé para
poder vestir a cueca e a calça em seu corpo endurecido; o Fernando, com a mão
em seu peito, segurava-o encostado a uma parede enquanto eu, agachado, tentava
terminar de vesti-lo...
Aconteceu então abrirem-se as
portas do inferno... ou, dizendo melhor, algum alguém conseguiu abrir a porta
da Radiologia e, como todo mundo está cansado de saber, a curiosidade matou o
rato etc, etc; de repente umas 15 pessoas começaram a caminhar túnel adentro,
conversando, fazendo piadas e rindo até darem de cara com a cena absurda
formada por dois homens e um cadáver! Gritos, espanto, caminho de volta aos
berros e na correria, burburinho, choro, comentários em todos os níveis, vozes,
altercações, chamem os seguranças...!...
Voei até a porta escancarada e a
fechei com força; dei duas voltas da chave na fechadura e fiz uma checagem com
a maçaneta; a porta se abriu; fechadura quebrada. Fora assim que os falsos
espeleólogos curiosos conseguiram entrar no túnel... as chaves só estavam
funcionando pelo lado de fora...
Terminamos rapidamente nossa
tarefa e saimos de volta para o ambulatório da Radiologia onde, evidentemente,
não fomos recebidos com aplausos. Quase podíamos sentir aqueles dedos, quase
físicos, nos apontando: "são aqueles lá!"... e aquele elevador que
não chegava... "vão acabar linchando a gente"!
Voltamos para a clínica prontos
para encarar uma demissão por justa causa, na melhor das hipóteses. Ao
entrarmos no corredor da Neuro vimos que o rolo estava armado; a própria
diretora de Enfermagem do HC, a nossa chefe e as Enfermeiras encarregadas
estavam nos esperando, algumas delas com um sorriso de vírgula e um esgar
sádico na face..."É hoje que o couro come", pensei; as mãos do
Fernando tremiam...
No entanto, tudo acabou bem;
conseguimos explicar os problemas da fechadura, das pessoas que, por
curiosidade abriram a porta e entraram no túnel, o vestir o defunto em pé...
- É, 'seu' Joaquim, vocês
deveriam ter checado se a porta estava fechada, realmente...
- Falha nossa, Enfermeira,
reconheço... mas, se a Manutenção tinha conhecimento do problema, podiam pelo
menos ter colocado uma tramela na porta...
- Tramela?... Faz-me rir...
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Um comentário final: Hoje em dia
um acontecimento desse naipe seria inadmissível; funcionários não pertencentes
ao corpo de Enfermagem são treinados para executar técnicas de preparação de
óbitos e as próprias funerárias tem pessoal em suas dependências para vestir e maquiar
os mortos sob seus cuidados... não podemos esquecer que o que foi narrado
aconteceu 40 ou quase 50 anos passados... eram outros tempos e outros
procedimentos...
P/ Joaquim Ignacio
6 comentários:
Ignacio, seus textos são, simplesmente, hilariantes. Prendem minha atenção e me transformam, cada vez mais, num fãnático por eles.
Amigos, aquele foi um início de plantão bastante complicado, mas, graças a Deus, nossa chefe, d. Maria José foi nossa advogada junto aos níveis superiores de chefia e tudo acabou bem. Quanto ao Fernando, com o passar do tempo fez um curso de Técnico de Radiologia e fez parte de uma das equipes que acompanhou o atendimento ao presidente Tancredo Neves desde sua internação até o fim; tornou-se um profissional de altíssimo nível e é uma das pessoas que guardam segredos sob juramento...
Abraços do Ignacio
Ignacio, mais uma hilariante história, até posso imaginar o Fernando empurrando o cadáver contra a parede e lutando para ele não escorregar, parabéns pela história, abraços, Nelinho.-
JOCA,JOCA...
Como sempre, o "jogo do empurra-empurra" e "a corda arrebentando pelo lado dos mais fracos". Ahahahahaaaaa!
Mas, não fosse isso a revolucionar a sua rotina hospitalar, não teríamos este texto delicioso.
Estava certa a italianada do meu bairro: " 'Difunto' é cum'as rôpa suja. 'Si' lava in casa"!Ahahahaha!
Mas os tempos mudam. Hoje, o "pacote" sai lavado, vestido e dentro de um caixão diretamente para o velório. Alguns tão maquiados, que parecem estar apenas dormindo... Será?!... Eu tenho minhas razões para duvudar. Fui a um velório de um conhecido, que também era conhecido como macho, machão, chauvunista, etc...
Lá estava ele, no caixão, vestido com terno de macho, sapato de macho - postura de defunto macho e um rosto declaradamente de um metrosexual... Ahahahaaaaaaa!
Adorei o texto!
Abração,
Natale
Joca, adorei o texto, e ri muito, porem, morrendo de MEDOOOOOOO.
Ignácio,
como sempre sou obrigado a repetir: seus textos são tão bons que dá vontade de ler mais, muito mais!
Imagino o susto das pessoas, num túnel escuro do Hospital das Clínicas, se deparando com um defunto seminu em pé, com um galalau mantendo-o em pé contra a parede e outro, ajoelhado aos seus pés, em estranha posição que, à primeira vista poderia parecer outra coisa... o susto só poderia ser mesmo enorme!
Para contar essas histórias, só mesmo você, com sua verve e fino humor...
Escreva mais! Por favor!
Abraço.
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