segunda-feira, 23 de abril de 2012

O cine que me fez perder a cabeça


O cine que me fez perder a cabeça.

Olho para minha estante, na sala. Do alto, duas grotescas faces me
contemplam, com seus grandes olhos e as ferozes bocas,
agudos dentes à mostra.
As cores são vivas, mas formam um conjunto harmonioso. São duas
cabeças em tamanho natural, máscaras tailandesas, da dança Khon. Que
conta sobre o mítico drama Ramayana, ou Ramakyan, a luta de Rama, na
sua reencarnação como Shiva, contra as forças do mal.

Quem as fez fui eu, num exercício de ceramista amador. Não só fiz as
duas, como pretendo fazer outra, formando um trio.
Fiz por achar bonitas, raras por aqui, embora tradicionais no ex-
reino do Sião, tão distante. Será por isto, mesmo?
Porquê recorrer a um folclore assim longínquo, sem nada a ver com os
tradições brasileiras?
Terei perdido enfim a cabeça, para espelhá-la nas destas máscaras?
Mas, não terão nada mesmo a ver, apenas uma caprichosa fantasia? Eu
discordo, pois minha relação com essas faces
ferozes é antiga. E tem muito em comum com a São Paulo de décadas atrás.

Quando existia um belo cine chamado Santa Cecilia, na Av. Olimpio da Silveira.
Estamos agora no final da década de 50. Casualmente quase, numa tarde
de sábado, adentro o Santa Cecilia, sem dar-lhe seu devido valor de
-literalmente- templo do cinema.
Estou acostumado a frequentá-lo, mas mesmo assim, mais uma vez
chamam-me a atenção a mesa central com patas de elefante
e as enormes poltronas, com descança braços elefantinos...

Lá dentro, a verdadeira e antiga influência das minhas futuras
máscaras bravias: guardiões tailandeses cercam a platéia, com suas
faces de demônios e olhos luminosos, que se apagam gradativamente
quando se inicia a projeção.
Isto impressionou-me fortemente, mas com o tempo perdi a noção da
verdadeira imponência e riqueza da ornamentação do cine.
Recuperei-a, deslumbrado, alguns dias atrás.
Meu caro Fabio Santoro, cinéfilo inveterado, enviou-me páginas de A
Revista, edição de 1999. Nelas, um belíssimo texto de Roberto Bicelli
sobre duas glórias da velha Pça. Marechal: o Circo Piolim...e o Cine
Sta. Cecilia.

E, enfim, as fotos! Maravilha! Emocionado, revi, pela primeira vez em
cinquenta anos, os suntuosos salões e platéia de meu cine favorito.
Numa exuberância oriental fantástica, um sonho das mil e uma noites, o
velho "Santa" voltava à vida. E que vida!
Sobre a platéia, uma abóbada celestial. Estrelas a luzir, como uma
noite alucinada de Van Gogh nos domínios dos marajás moguls, ou no
antigo Reino do Sião, que hospedou, num caso verdadeiro, a professora
inglesa Ana.

Tudo muito além do que jamais poderia supor nossa vã imaginação, ou
nossas pobres lembranças.
Agora, sim, sentimos- que perda absurda, a estúpida destruição do
esplendoroso cine, pecado destes que jamais poderão ter perdão.
Então, só mesmo chorando...ou fazendo máscaras exóticas de uma cultura
estranha, uma humilde mas sincera homenagem póstuma ao grande Santa
Cecilia.


Por Luiz Saidenberg

6 comentários:

Soninha disse...

Olá, Luiz!

Realmente, foi uma perda inestimável o cine Santa Cecília...
São Paulo perde em cultura, em espaços culturais, mas, ganha o espaço que precisa para crescer verticalmente e ser preenchido com fumaça e fuligem... É a força do progresso. Assim dizem!
Quanto às máscaras, adoreeeeeeeeei!
Tentei postar a outra foto, mas, o blogger (Google), às vezes, tem vida própria e nem sempre conseguimos realizar aquilo que pretendíamos. Ao menos uma foto consegui postar e, confesso, a da que gosto mais. Acho esta linda!
Parabéns pela sua arte e poelo seu texto.
Obrigada.
Muita paz!

Miguel S. G. Chammas disse...

Luiz, as mascaras são lindas e muito bem trabalhadas. Gostei demais.
Quanto ao Cine Santa Cecilia, onde muitas vezes estive nos meus tempos de menino, confesso que fiquei triste e percebi que minha saudades aumentaram. Só nos resta lembrar não é?

Leonello Tesser (Nelinho) disse...

Luiz, eu só entrei uma vez no Cine Santa Cecilia, foi numa tarde de domingo junto com um amigo que residia na época na Rua das Palmeiras, mas era um belo cinema, quanto as máscaras eu gostei, um abraço, Leonello Tesser (Nelinho).

Leonello Tesser (Nelinho) disse...

Luiz, eu só entrei uma vez no Cine Santa Cecilia, foi numa tarde de domingo junto com um amigo que residia na época na Rua das Palmeiras, mas era um belo cinema, quanto as máscaras eu gostei, um abraço, Leonello Tesser (Nelinho).

Laruccia disse...

Luiz, recordar este cinema causa sempre uma revolta na nossa sencibilidade, ausente de nossos "progressistas"; por abaixo tão belo templo de diversão. Parabéns, Saidenberg.
Modesto

Wilson Natale disse...

Saidenberg:
Somos privilegiados! Conhecemos as Salas de Cinema e os Palácios de Cinema. Como o Metro, o Marrocos, o Alhambra(na Rua Direita), etc., o Santa Cecília era um "senhor" Palácio.
Não há pois, que ter remorsos. Era mais um dos tantos lidíssimos Cinemas que tínhamos. Uns nos encantávam mais.
E o Santa Cecília encantou você! E o tempo a passar, a sua sensibilidade artística touxe de volta os elementos que adornavam o cinema.
E, coisa melhor, os elementos viraram textos, viraram cerâmica e viraram história do seu tempo, acrescentando mais um elemento para a história de S. Paulo.
Gostei muito do seu trabalho como ceramista!
Abração,
Natale