segunda-feira, 23 de abril de 2012

Dona Zezé, Odete, Eu...anos 50

D. ZEZÉ
Estudar no centro da cidade de São Paulo em 1950 e viajar de bonde sózinho, ida e volta para casa, parar para ver as vitrines e fotos das cenas de filmes nos cinemas, andar pelas movimentadíssimas ruas de São Bento e Direita em pleno meio-dia, era uma aventura para um sujeitinho de 11 anos, recém começando a usar calças compridas, sapatos e meias o dia todo e que começava a usar odorono nas axilas, e doido prá barba começar a crescer; naqueles longínquos anos 50s éramos alertados por nossos pais sobre os perigos da cidade: "Olha para os dois lados quando for atravessar uma rua, atravesse nas esquinas ou nos faróis, se não precisar atravessar não atravesse, não converse com estranhos, segure com a mão os níqueis no bolso, não vá perder a caderneta escolar, não ande nos estribos dos bondes, espere o bonde parar para descer, quando passar em frente a uma igreja faça o 'em nome do padre', se eu souber que você gazeteou aula EU TE MATO, de sgraçado!!!"... (minha mãe era do tempo da 'gazeta', o verbo 'cabular' ainda não era muito usado pelos mais velhos, mas ela tinha alguns argumentos extremamente ameaçadores, cabular, portanto, nem pensar!)
Eram muitas recomendações que a gente ia cumprindo na medida do possível, embora algumas, qual tentações demoníacas, fossem difíceis de serem obedecidas "já que ninguém está vendo...", mas sempre tinha alguém vendo, geralmente uma vizinha que estava na hora errada e no lugar errado:
"D. Zezé, não vai ficar braba com ele, coitado... mas eu vi o Inácio descendo do bonde andando no ponto em frente ao Arquidiocesano..." Esse tipo de informe agia como um gatilho que disparava a fúria materna, fazendo com que o couro comesse solto, com farta distribuição de chineladas (às vezes tamancadas, daqueles tamancos de madeira!) e tapas; minha mãe nem esperava eu entrar dentro de casa: o espetáculo começava no portão da rua, gritos, choro, ranger de dentes, cachorros latindo, vizinhança implorando, mas sem insistir muito:
- Chega, Zezé! 'ocê' vai matar essa criança...
Ah, aqueles eram tempos em que nossas mães nos castigavam fisicamente e sem remorsos e nós sabíamos porque estávamos apanhando e aceitávamos o castigo sem reclamar (muito!) porque a gente tinha a convicção que aquela explosão de ódio não duraria muito, porque mãe é mãe, pombas!
- Para de chorar, vai lavar o rosto que você está com os olhos vermelhos... fiz um manjar de coco, está na geladeira... vai lá comer um pedaço...
- Pode? Posso pegar um pedaço grande?
- Pega um pedaço normal, tem mais gente prá comer... não abuse, quer apanhar de novo?...
***************
Geladeira! Falei em geladeira, 'né'? Fomos a primeira família do quarteirão a ter uma geladeira; era uma Clímax que logo à sua chegada foi rodeada por quase todos os vizinhos do quarteirão e, em seguida, fornida com diversas garrafas de água, que é o que nós tínhamos em abundância. A Climax era uma geladeira cujo motor fazia um barulhão dos infernos e a cada dois minutos alguém abria sua porta e olhava prá dentro:
- ...' ce viu? tem uma lâmpada que acende ... será que ela fica acesa com a porta fechada?
- Tem um ventinho frio! acho que 'tá' começando a gelar...
- Quando estiver gelando mesmo, vamos fazer sorvete de limonada?
Então, de repente: CLICK!
- Ih, mãe! a geladeira parou de funcionar...
- Como parou de funcionar? O motor não está funcionando?
- Não! Parou mesmo, mas a lâmpada acende quando se abre a porta.
- Que inferno! Toma 200 réis, vai lá na farmácia do 'seu' Zé e liga pro seu pai. Fala que a geladeira DELE, QUE ELE COMPROU (entonação irônica) não está funcionando (falei prá não comprar essa m...!)...
Aqueles dias foram dias de aprendizado. Ficamos sabendo que geladeiras mantém a temperatura independentemente de o compressor estar ou não funcionando, bastando não deixar ar frio escapar, ou seja, mantendo a porta fechada ela ligaria e desligaria automaticamente. Descobrimos também que a lâmpada não fica o tempo todo acesa e também soubemos da grande dificuldade em convencer minha mãe que não deveria tirar a geladeira da tomada durante a noite (se eu desligo o rádio quando vou dormir, porque não posso desligar a geladeira?!). O aprendizado continuou com liquidificador, enceradeira, a apavorante panela de pressão (muita gente já morreu quando a panela explodiu, dizem!), com o chuveiro elétrico e o fim dos banhos de bacia com canequinha (mais mortes, agora por eletrocussão), com o fogão à querozene (explodiu e tocou fogo na casa; morreu todo mundo, deu no Coripheu) e, posteriormente, com o fogão à gás! (não deixe o gás aberto, que tudo pode explodir ou vamos morrer todos 'intochicados'!); à medida que a situação da família ia melhorando, novos equipamentos iam sendo adquiridos, desfazendo ou criando mitos, tudo isso naqueles primeiros anos da década dos 50s, anos de transição de uma vida num cortiço do Bexiga para uma nova maneira de viver, menos sacrificada, com um pouco mais de lazer e com mais conforto.
ODETE E EU
Quando fiz 12 anos, meus pais fizeram aquela festinha manjada, com bolo, refrigerantes, gelatina, balas de coco, Toddy gelado, sanduiches de carne louca, palitinhos de pickles, azeitona e salsicha, cantoria de 'parabéns prá você', churrasco e chopp para os adultos... Entre as pessoas da festinha, um casal recém chegado do interior, parentes de minha madrinha, 'seu' Fiinho e D. Daisy, pais de duas meninas: Odete e Elisabete. A Odete era uma mulatinha linda, de 3 para 4 anos, que grudou em mim:
- Tio, conta uma histólia...
- Era uma vez...
- É histólia de quê?
- Da Branca de Neve...
- 'Num' quelo, 'num' gosto... conta uma de monsto...
Isso foi em 1952. Em 1971, 30 de janeiro, casei-me com a Odete, aquela menininha, que hoje, aos 63 anos, continua linda e me complementa; estamos juntos a 41 anos, meus filhos já têm cabelos brancos, tenho 5 netos, dois criados por nós, o mais velho, o Gabriel, e sua irmã, a Gabi, ambos criados aqui em casa como filhos (são filhos do Marco Túlio, pai solteiro!), chamam a Odete de mãe e eu de "vô", mas não tem importância, não sou invejoso, não devo e nem posso esquentar a cabeça... porque ainda estou vivo e sou feliz, graças a Deus!
E "vamo qui vamo"!

Por Joaquim Ignacio

10 comentários:

Luiz Saidenberg disse...

Ainda bem, Ignácio. Vivo e e bem vivo para contar belos relatos, como essas peripécias de infância. Abraços, e parabéns tb pelo níver...

Soninha disse...

Ignácio...cadê você?
Eu sumo, às vezes, mas por força do meu trabalho. Pronto. Expliquei. Agora, é com você nos dizer por onde anda e o que tem feito, tá?!
Quanto ao texto, simplesmente, sensacional!
Sua vida mostrada de uma forma bem humorada, só nos dá prazer em ler.
Obrigada!
Parabéns pelo aniversário!
Muita paz!

Miguel S. G. Chammas disse...

Que texto lindo amigo!
Alis é só o que você faz,textos maravilhosos.
Agora amigo, você viu no comentário acima a braveza da Da. Sonia, eu garanto que ela é assim mesmo quando se enfeza, portanto trate de se explicar direitinho!

Anônimo disse...

Sonia e Miguel, como vão? Tudo bonitinho? Ótimo!
Às vezes eu desapareço de mim mesmo, principalmente quando o astral baixa... Como vcs devem saber, tenho alguns problemas de saúde que dizem respeito ao coração (sou o maior consumidor de stents deste nosso país!)e, qualquer coisinha, qualquer dor ou sensação diferente me deixa com a pulga atrás do pavilhão auricular e aí é correr para o convênio, para o INCOR, para o babalaô e apelar prá todos os santos... Felizmente vai tudo correndo bem comigo de acordo com meu último check-up, foi só o susto (Seguro morreu em idade provecta, diz aquele velho deitado...).
Sinceramente, fiquei bastante sensibilizado pela preocupação de vcs em saber de mim... Estou passando uns tempos em minha casa em Mongaguá com a Odete e minha mãe, a famigerada d. Zezé... Nós 3 estamos esfriando a cabeça... só um pouquinho!
Abraços a todos
Ignacio

Leonello Tesser (Nelinho) disse...

Ignácio, bonita história, o que interessa realmente é ainda podermos escrever nossas memórias, boas ou más mas, no computo geral creio que o amigo teve mais bons do que maus momentos, que Deus te proteja e esteja sempre conosco, abraços, Nelinho.-

Anônimo disse...

Sonia, por favor, entenda que não é uma correção, mas a foto da Clímax que vc postou é do modelo mais moderno, algo como "Clímax fase II"; a Clímax que meu pai comprou em 50 ou 51 era o primeiro modelo, uma geladeira movida à lenha, uma Clímax nº Zero; toda vez que ela se religava piscavam as luzes de todo o bairro da V. Clementino...
Abraço do Ignacio

Laruccia disse...

Muito bem, Ignácio, soubeste aproveitar bem os "cascudos" de sua mãe. Formastes uma bela família e com saúde, (com um pouco de desgaste, mas superáveis). Agora, gazas as delícias de uma vida exemplar junto aos seus. Parabéns, Ignácio.
Laruccia

Wilson Natale disse...

Tem razão Joca: "Vamo qui vamo"!
Uma casa é um mundo de descobertas e um mundo de acidentes tristes ou hilários. Portanto ela nos oferece um marde histórias.
Rí muito com os "causos" dos eletrodomésticos e fui lembrando dos meus.
Lembrei da geladeira Clímax que, como todas as outras,precisavam de uma capinha de plástico no cabo, para que não tomássemos um choque, quando a abríamos com as mãos úmidas... Ahahahaaaaaa! Lembrei do barulhão que ela fazia e principalmente quando havia queda de energia que, naquela tempo era tão ruim e precisávamos comprar um estabilizador ou regulador de voltagem.Isso valia para todos os eletrodométicos.
Em casa também, as "coisas"foram chegando aos poucos e COM OS MESMOS TRANSTORNOS E MEDOS...Ahahahahahaaaaa!
Em casa a nossa linda panela de pressão PANEX explodiu porque não ensinaram a minha nonna que, assim que a vávula de pressão começasse a girar era preciso abaixar o gás... Ahahahahahahhaaaa! Sorte que a vovó marcou o tempo de cozimenento e foi lavar a roupa.
Tornou-se antológia a história de vovó "pilotando" uma moderna enceradeira GE.
Ah! Os velhos tempos!... O único perigo real que tínhamos era com os encanamentos que ligavm o gás ao chuveiro. Ele oxidávam muito rápido e havia o perigo do escapamento de gás.
Escreí demais? A culpa é sua! Ahahahaaaaa!
Adorei o texto! Um pouco do seu cotidino paulistano, desbravando a Cidade;atribulações doméstica e a sua Odete. Tudo passou, ma a Odete veio para ficar e ficou. Ai está alegrando a sua vida.
Abração,
Natale

Wilson Natale disse...

JOCA: Nunca é tarde e sempre é bom dar a alguém os parabéns por mais um ano de vida.
Parabéns Joca! Vida longa e cheia de paz, saude, dinheiro e alegrias!
Abração,
Natale

Anônimo disse...

Oi Natale! É sempre um prazer ler um texto seu, principalmente quando é um comentário a respeito de materia produzida pr mim. Quanto à passagem dos anos, já atingí aquela idade em que não faço mais aniversário: já a algum tempo venho "fazendo" efemérides...
Grato pelas palavras e abraço a todos.
Ignacio