domingo, 11 de março de 2012

Intensa magia (1962)

(Em memória dos meus pais.)
“Ah! L’amore, l’amore! Quanta cosa ci fà fare l’amore...
Quanta cosa ci fà dire l’amore!
Quante frasi dette al vento...” (*)
A casa vibrava com a fala alta de papai, presa de mais um ataque de ciúme. Mais uma vez o “nosso Otello” apaixonado vociferava, transpirando amor, insegurança e medos vazios. Coisa de homem possessivo...
Papai discutia feio com mamãe: “Com este vestido você não vai! Olha só o tamanho desse decote! Sem mas e sem menos mas, com este vestido você não vai!”
Vovó, tentando apaziguar, diz ao meu pai: “Deixa disso! É um decote perfeito. Além do mais, a Annamaria tem as costas lindas!”
Pronto! Vovó tocara em um ponto nevrálgico. Em vez de apaziguar, ela só fez aumentar a ciumeira e o vozeirão do meu pai.
Vovó: ”Deixa de ser irracional, Giovanni”! Ao que ele respondeu: “Diga a senhora o que disser, com esse vestido ela não vai”!...
Mamãe frustrada, sem dizer palavra foi se refugiar no seu quarto. Papai enfurecido saiu para a rua, batendo a porta.
O meu avô, que até aquele momento não havia dito nada, voltou-se para a minha avó e disse: “Giovan’ não tem jeito! Em relação a Annamarì, ele é “fuoco, amore, passione e gelosia”!
Pensei: “Meu “babbo” é fogo, amor, paixão e ciúme?! O que isso significa”?... Olhei para o meu irmão e lhe disse baixinho: “Acho que podemos dizer adeus ao baile de formatura do nosso primo”...
Quase cinco horas da tarde, meu pai (Com o rabo entre as pernas, como dizia a minha avó.) voltou da rua trazendo na mão um pequeno buquê de violetas. Entrou e foi direto para o quarto, onde mamãe estava. Ficaram lá, trancados, por um bom tempo... Vovô, com um sorriso nos lábios, deu-me um tapinha nas costas e disse: “Vocês irão ao baile de formatura”!...
Nove e meia da noite! Eu, irmão e meus primos adolescentes estávamos enlouquecidos dentro do salão do Clube Pinheiros. O baile de formatura do meu primo seria o primeiro de tantos outros e, também, o nosso primeiro baile que ia das dez da noite às quatro da manhã!
Dez horas, a orquestra deu inicio à Valsa dos formandos e à primeira seleção de músicas. Primos, primas e eu nos deliciamos com os rocks, as baladas, os swings e os cha-cha-cha. A segunda seleção foi de samba, a terceira foi intercalada por boleros, tangos e sambas-canção...
Depois da seleção de samba, eu fui sentar-me junto à mesa dos meus pais. Dali, eu via os pares em movimento pelo salão e tentava memorizar os passos de dança e a coreografia que faziam. De repente, em meio a eles, vi o meus pais. Dançavam colados, de corpo e de rosto. Rostos que se separavam e ofereciam um ao outro um sorriso enigmático. Eu estava encantado, como se visse uma miragem. Como se eu os visse pela primeira vez. Quem eram aqueles estranhos que eu chamava de pai e de mãe?... A pausa da orquestra cortou o encantamento.
Meus pais voltaram à mesa. Papai olhou para mim e perguntou sorrindo: “Stanco”? (Cansado?) Eu respondi: “Oltre che stanco! Morto”! (Mais que cansado! Morto!) E eu continuei olhando para os dois, como se eles me fossem estranhos...
Finda a pausa, a orquestra nos ofereceu uma seleção de músicas brasileiras, cantadas pelo “crooner”. Rápidos, babbo e mamma se levantaram e foram para a pista. Eu, hipnotizado, seguia os dois em cada movimento.
Eu vigiava... Lá estava a minha mãe, no seu vestido longo e negro, bordado com lágrimas de cristal. Decote profundo nas costas e o decote exuberante na frente, guardando e revelando o segredo de que aqueles seios ainda firmes de uma mulher de 38 anos eram escondidos apenas pelo negrume do tecido... Lá estava meu pai, “sexy”, no seu “smoking”. Elegantíssimo no traje e na postura, levando a minha mãe pelo salão em coreografia leve e harmônica; seus olhos brilhavam de um modo estranho, seu corpo colava-se ao da minha mãe, seus rostos unidos roçavam-se em carícias...E os beijos demorados na boca... Eu fui entrando em uma nebulosa desconhecida que oferecia à minha mente, os primeiros rudimentos de paixão, sensualidade e de eroticidade. Pura magia! Então é isso que é o Amor?...
Lembrei da frase do meu avô. E vovô tinha razão, naquele momento eu testemunhava tudo o ele que dissera, não somente em meu pai, mas também na minha mãe. Via a muita ternura entre os dois... Uma música do “crooner”, que até hoje não esqueci, definiu muito bem o ciúme que meu pai sentia por mamãe:
“Não sei
Que intensa magia
Teu corpo irradia
Que me deixa louco assim Mulher.
Não sei,       
Teus olhos castanhos,
Profundos, estranhos
Que mistérios ocultarão Mulher.
Não sei dizer.
Mulher,
Só sei que sem alma
Roubaste-me a calma
E a teus pés eu fico a implorar.
O teu amor tem um gosto amargo . . .
Eu fico sempre a chorar nesta dor
Por teu amor,
Por teu amor... Mulher”
E os olhos castanhos de minha mãe estavam perdidos nos olhos do meu pai...
Vendo os dois tão bonitos e unidos, ali na pista de dança, eu entendi o porquê da minha mãe suportar-lhe todo aquele ciúme de Otello. Ela era também fogo, paixão, amor e ciúmes. Os dois sempre “dentro un fuoco che bruscia e che mai sarà spento” (dentro de um fogo que queima e que jamais será extinto.). Continuei olhando para aqueles estranhos que ora desapareciam, ora apareciam entre os pares, meu pai e mãe que, absurdo, não o eram mais. Não mais “babbo” e “mamma”, nem mesmo marido e mulher. Ali estavam, agora, dois amantes, homem e mulher, corpo e alma, transformados em unidade.
Os metais sussurraram calidamente “Moolight Serenade” nos ouvidos de cada par que deslizava pelo salão agora envolto por suave penumbra. Meus amados estranhos se entregaram definitivamente um ao outro... Como fossem Fred Astaire e Ginger Rodgers dançando em um cenário de sonho...
Parece-me que isso aconteceu há muito tempo... Ou foi ontem? Foi hoje?... Foi desde sempre! Agora e toda vez que eu, o adulto olho/olhando o passado pelos olhos do adolescente que fui, vivo/revivo aquele baile de formatura em que, envolvido pela mesma intensa magia fico/fiquei a olhar os meus amados estranhos a deslizar pelo salão entregues um ao outro, olhando-se nos olhos com olhares que prometiam findo o baile, inenarráveis carícias de alcova... Segredos entre quatro paredes...
Ah! Meus amados estranhos que me foram pai e mãe. Depois daquele baile, eu realmente os conheci! Não mais estranhos.
Foi, é e será sempre, uma honra tê-los conhecido!
(*) “Ah! O amor! O amor! Quanta coisa nos faz fazer o amor!
Quanta coisa nos faz dizer o amor.
Quantas frases ditas ao vento!”...
Saudade...
Por Wilson Natale

14 comentários:

Miguel S. G. Chammas disse...

Natale amigo, seus pais, naquela noite, sem mesmo pretenderem, te deram uma grande lição de sexualidade.
Foi tão bem dada essa lição que, ainda hoje, passados vários anos, ela continua produzindo efeitos.
Eu, mesmo tendo sido um exímio dançarino, nunca tive de meus pais lição tão produtiva.

joaquim ignacio disse...

Poético, sensível, real... Texto inspirado que só poderia ter vindo do Natale. Obrigado pelos bons momentos de leitura.
Ignacio

Laru disse...

Natale, a beleza e o encanto do momento só é sobrepujado pela maravilhosa escrita que só vc sabe faser acontecer. As pequenas discussões sobre o decote, serviram de preâmbulos para a sonhada noite que estava reservada pra eles e pra vc, detentor de rara sencibilidade, captou nas ondas sonoras das músicas que estavam derramando pelo salão e toda felicidade e amor que seus pais traziam no coração, ardentes de paixão. Muito linda e prazeirosa sua crônica, Wil. "Questa e una vera manifestazioni di amore com sapore di Dante ma, solo il "Paradiso"
Auguri, fratelo mio, um baccio in testa a te, a mama, e a lo babbo (si ancora "cambane")
Laru

Laru disse...

Se escreve "d'amore" e não "di amore". Natale, a bela foto que ilustra seu comentário, não é Fred Asterie e Ginger Rodger, no filme "Alegre divorciada"?
Me perdoe a inobserváncia do seu subtítulo "In Memoria", seua pais já faleceram. Perdoa.
Laru

Arthur Miranda disse...

Que beleza Natale, depois dessas duas semanas sabáticas do Blog, esse recomeço fascinante com você nos brindando a todos nós com seu magico texto, Intensa Magia, parabéns

margarida disse...

Natale, lendo seu texto lembrei da musica: "É o amor que mexe com minha cabeça e me deixa assim. Faz eu lembrar de você e esquecer mim e ver que a vida é feita pra viver .É o amor que deu um tiro certo no meu coração e derrubou a base forte da minha paixão e fez me ver que a vida é nada sem você." Adoro historias de amor, a do seus pais foi fantástica.Um grande abraço.

Wilson Natale disse...

Miguel: Aos 14 anos, graças ao meu tio Amedeo, a descoberta do sexo (tesão)estava a todo o vapor (risos).
Naquele baile eu descobrí o Amor e a magia que unem duas pessoas.
E foi também maravilhoso descobrir a humanidade dos meus pais.
E foi isso que sempre me fez sempre, procurar algo mais que o sexo.
Abração,
Natale

Wilson Natale disse...

Valeu Joca!
São as boas lembranças carregadas de amor e saudade.
Abração,
Natale

Wilson Natale disse...

Larù carissimo. Confesso não saber de que filme do Fred e Ginger é esta foto. Encontrei-a na Internet, sem qualquer referência.
Liga não, Larúcia. Se meu pai estivesse vivo teria hoje 96 anos, mia mamma 88. Valeu pelos beijos. Até hoje beijo os meus pais com o coração e pensamento.
Bacione in testa,
Natale

Wilson Natale disse...

Valeu Artur! Agora eu fico esperando pelos seus textos que sempre me agradam muito.
Abração,
Natale

Wilson Natale disse...

Margarida:
Dois acontecimentos simples, em um mesmo dia, que resultaram em importates lembranças.
Com os meus pais eu descorí o amor e a importância da busca da "outra metade" para se tornar o todo.
E o deslumbramento causado pelos bailes de formatura.
Com meu pai, descobrí a irraciolanidade do ciúmes: Minha mãe podia usar decotes ousados na frente. Podia até - escândalo para os anos 60 - usar, como usou, um vestido sem combinação e sutiã... AGORA, DECOTE CAVADO NAS COSTAS, DAVA BRIGAS E CIUMEIRAS. (Risos)
E a minha mãe era ciumenta à sua maneira: Meu pai era míope (quatro graus e meio) e quando saíam, a mamma dizia que não gostava que ele usasse os óculos... Que o usasse no cinema, no teatro... (risos) Um míope sem os ditos não poderia deleitar-se com as beldades do caminho. Eta mamma esperta que eu tive!
Abração
Natale

Leonello Tesser (Nelinho) disse...

Natale, que maravilha de texto, mixto de amor, ciúme e sensualidade! eu mesmo já tive essas crises com a minha patrôa, coisas do amor, parabens pela narrativa, abraços, Leonello Tesser (Nelinho).

Lia Beatriz Ferrero Salles Silva disse...

Lindo! Maravilhoso!
Fiquei emocionada... sem palavras




































Lindo... Maravilhoso!
Fiquei emocionada... não sei o que mais escrever!










1

Soninha disse...

Oieeeee...

Estive tão ausente, tão atarefada, tão tão....credo!
Mas, aos poucos, volto para comentar os preciosos textos que só enriquecem este espaço querido.
E, quando se fala de amor, só enternece nossos corações e nos deixa com gosto de quero mais.
Valeu, Natale!
Muita paz!