sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

As histórias de Sinhá Chiquinha

Francisca – a Sinhá Chiquinha - era neta de africanos que eram propriedade dos Junqueira, ricos lavradores do Café que, com a Abolição, a família ficou na fazenda, uns como assalariados, outros, os mais idosos, como agregados. Francisca casou-se aos 15 anos – “Com a bênção do padre, graças a Deus”! Por um lance do Destino, Francisca e o marido passaram para as terras dos Prado. Fixaram-se na Fazenda São Martinho. Moravam na colônia, perto dos meus avós. Ela e minha avó, pura empatia uma pela outra, desde a primeira vez. E nos anos que se seguiram vovó alfabetizou Francisca e ensinou-lhe todo o tipo de prenda doméstica européia. E Francisca que era orgulhosa, que tinha postura de dama e que articulava bem as palavras, tornou-se mais sofisticada. Daí viera-lhe o apelido de Sinhá. Mais uma vez, quis o Destino que Sinhá Chiquinha e o marido, no fim dos anos 10, viessem para São Paulo. E Sinhá Francisca continuava morando na Rua da Boa-Morte (hoje, Rua do Carmo) – no Bairro do Carmo – quando os meus avós vieram para São Paulo, em 1930. E a amizade que seguia por cartas transformara-se em visitas semanais...
Adorávamos a visita de Sinhá Chiquinha! Além do delicioso bolo de fubá cascudo que ela nos trazia, ela era uma boa “contadeira” de histórias. Contava-nos histórias de fantasmas que ela, jurando por todos os santos, vira com os próprios olhos! Falava-nos dos escravos mortos que vagavam pelas terras dos Junqueira; do fantasma de um menino negro que aparecia junto ao monjolo, prenunciando a morte; contava sobre as estranhas luzes que dançavam sobre as sepulturas dos escravos; enchia-nos de medo falando sobre o pesado sino de alerta da sede da fazenda que, tarde da noite, tocava sozinho “sem que mãos humanas o tocasse”.
Das histórias de Sinhá, a que mais me impressionou foi a dos fatos estranhos que aconteciam na Rua da Boa-Morte...
Em São Paulo, Sinhá Francisca, mulher nascida e criada no campo, não gostou muito da cidade. Todo aquele casario adensado em vielas estreitas, quarteirões arrasados por demolições e aquelas casas construídas uma em cima da outra, buscando o céu... Foi morar à Rua da Boa-Morte, no Carmo (hoje, distrito da Sé).
Desde a primeira vez, não gostou da rua. Havia nela algo que lhe dava arrepios. À noite, tinha medo de olhar pela janela.
A janela do seu quarto dava para a rua. Às vezes, ela acordava tarde da noite, ouvindo, “não com os ouvidos”, sabia, sons estranhos, vozes em lamento. Sinhá Chiquinha então, agarrava-se ao rosário e rezava o Salve Rainha... Tudo se acalmava e ela voltava a dormir.
Mesmo de dia, a Rua da Boa-Morte era triste. Nela, parecia que a neblina nunca se dissipava. Uma neblina além da visão dos olhos.
Passa o tempo e “coisas do outro mundo” começaram a acontecer...
Cumprindo o ritual de rezar o terço em sete igrejas, lá estava Sinhá Francisca na Igreja do Carmo (igreja que não mais existe e que, junto com o convento foi demolida para dar lugar à Secretaria da Fazenda), concentrada em desfiar o rosário, quando algo lhe chamou a atenção. Sentindo um frio intenso, incomodada, abriu os olhos e viu passar junto a si um padre que seguiu em direção ao altar-mor e... Desapareceu! Apavorada, agarrou-se ao rosário e, embora a vontade de sair de lá fosse muito forte, mulher de fé que era não podia quebrar seu compromisso com Deus. Acalmou-se e reiniciou o terço.
Dias depois, Sinhá Chiquinha foi desfiar o rosário na Igreja da Boa-Morte. Estranhou que àquela hora da tarde a igreja estivesse tão cheia. Pelos lamentos de dor e tristeza ela concluiu que deveria ser uma missa de mês, ou de sétimo dia... Mas, onde estava o padre?... Fechou os olhos e concentrou-se nas orações. Para isso ela estava lá!
Acabara de rezar as Ave Maria e, quando ia iniciar o Pai Nosso, desconcentrou-se. Percebeu que o templo estava assustadoramente silencioso. E frio demais, coisa que antes não estava. Abriu os olhos e viu a igreja vazia. Era impossível toda aquela gente que estava lá sair sem fazer ruído. Lembrou-se do fato acontecido no Carmo e assustou-se. Desta vez, um tanto desequilibrada, guardou o rosário na bolsa, levantou-se e saiu a toda pressa...
Avessa a abrir as janelas que dava para a rua quando anoitecia por duas vezes Sinhá Chiquinha foi surpreendida pelas visões fantasmagóricas.
Havia já alguns dias que chovia forte em São Paulo. Naquela noite os trovões faziam estremecer as casas, relâmpagos intermitentes iluminavam o céu e raios riscavam a noite. Então, um estrondo tremendo deu início à borrasca. A chuva transformara-se em violenta tempestade. Pensando no marido, que trabalhava no Brás, temendo mais uma inundação do Tamanduateí ela, esquecida do medo, abriu a janela para ver o chuvaréu. Congelou e engoliu o grito de pavor que quase lhe escapa. Diante dela, passava o mesmo padre que vira no Carmo. Paralisada, seguiu com os olhos aquela figura fantasmagórica até que ela desaparecesse pelo Beco do Carmo (hoje, Rua dos Carmelitas)...
Meses depois, Sinhá Chica, acordada pelos rumores e os barulhos que vinham da rua àquela hora da madrugada, irritadíssima abriu a janela do quarto. O que viu a fez perder os movimentos e a fala. Na rua passava um estranho cortejo de homens e mulheres, vestidos à moda antiga que lamentavam, choravam e rezavam. À frente do grupo, um homem com as mãos amarradas, ladeado por dois soldados (milicianos). Com os olhos arregalados ela foi percebendo que aquelas figuras, até então sólidas, começaram a diluir-se em pleno ar. Rápido não havia mais ninguém na rua. Sinhá Chiquinha arriou, caiu ao chão. Desmaiou de tanto medo!...
Sinhá dava-se muito bem com as vizinhas. Mas nunca fora de falar-lhes dos próprios sentimentos ou outras particularidades de sua vida. Mas, dois dias depois de desmaiar de tanto terror, fragilizada e entre lágrimas, abriu-se com elas. E o seu espanto foi grande, quando soube que muitas das vizinhas passaram pelo mesmo susto e terror. O mesmo pelo qual passaram os moradores antigos da Boa Morte. O assombramento da rua era comum a todas as épocas.
Ficou sabendo a história do Prior do Carmo, homem violento e rude que, em 1859 foi assassinado, estrangulado por dois escravos que não aguentaram mais o seu maltrato. Desde então, ele vaga pela igreja, pela rua e desaparece no beco.
Soube também que a Rua da Boa-Morte era a “via crucis” dos sentenciados à morte que demandavam ao Morro da Forca. Pela rua seguiam, em procissão, acompanhando o sentenciado, parentes e amigos. Iam até a Igreja da Boa-Morte, onde o sentenciado recebia a extrema unção. Na igreja permaneciam os parentes e amigos a lamentar e orar, enquanto o sentenciado seguia pela Rua Tabatinquera, rumo ao Morro da Forca (Hoje, Praça da Liberdade).
Aliviada, Sinhá Chiquinha, piedosa que era, decidiu rezar o terço das almas, todas as sextas-feiras, na Capela dos Enforcados. Funcionou. Nunca mais foi perturbada... Mesmo assim, enquanto morou lá, na Boa-Morte, recusava-se a abrir as janelas, quando anoitecia.

Por Wilson Natale

13 comentários:

Luiz Saidenberg disse...

Bela história, Natale.
Gostei muito.
Um abraço.

joaquim ignacio disse...

Natale, o prazer de ler seu texto!
A nossa cidade tem seus mistérios, que todas os tem, escancarados ou herméticos, segredos como os que você nos revelou numa narrativa brilhante. Gostei "prá 600", talvez porque mexeu um pouco comigo e com a Odete. Melhor explicar: eu sou bisneto da d. Joana Mulata, cativa na regiao de Bauru, mulher lindíssima, uma lenda até hoje em São Manuel e entorno. A Odete é bisneta da Sinhá Laurinda, cativa que foi na região de Franca, Patrocínio Paulista e Itirapuã, outra lenda na região. Conheci pessoalmente Sinhá Laurinda que morreu com cerca de 115 anos, mais de 40 anos atrás. Essas foram mulheres sábias e donas dos mistérios, Sinhá Chiquinha, Joana Mulata, Sinhá Laurinda e muitas outras que desconhecemos...
Obrigado pela beleza de texto!
Abraço do Ignacio

Zeca disse...

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Bravíssimo, Natale!

Mais uma das suas obras primas! Texto belíssimamente construído, vai nos prendendo à espera do desfecho que, no fundo, não queremos que chegue nunca, já que a leitura é tão agradável! Conte mais!

Abraço

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Zeca disse...

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Natale!

Perdoe a carona neste espaço que é seu, mas hoje é aniversário da Lurdes, então:

LURDES!

Feliz Aniversário!

Com muita saúde, paz, tranquilidade e alegrias!


Abraço

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Laru disse...

Vechio fratelo, apesar de ter nascido e morar por muitos anos no Braz, bem perto do lugar em que se desenvolveu as histórias da Sinha Chiquinha, fiquei muito contente de tomar conhecimento dos fatos. Não sabia de tantos casos ocorridos naquela época. Obrigado, Natale por fazer chegar até nós estes preciósos momentos de nossa bela história. Parabéns, Wil, gostei de sua narrativa.
Laruccia

Cida disse...

"Natale", com que conhecimento você nos descreve essas apaixonantes histórias!!! É muito bom "ler você".
Abraços
Cida

Soninha disse...

Ah, Wilson!
Você e suas histórias maravilhosas!
Que bacana, porque o povo brasileiro, em sua grande maioria, term um pezinho na senzala e outro na tribo, né?!
E isso é muito bonito...
Ainda mais agora, lendo a história da Sinhá Chiquinha, vamos recordando tantas outras histórias, insólitas ou não, mas que excitavam a imaginação de adultos e crianças e enchiam seus corações de muito medo.
Os mistérios de Sampa...como sempre, são muitos e é bom conhecer suas histórias.
Valeu, Natale!
Obrigada.
Muita paz!

Miguel S. G. Chammas disse...

Natale
Linda e intrigante narrativa.
Este texto poderia ser inc,uido em coletaneas de mistério e terror, sem qualquer sombra de dúvida.
Com um pouco mais de empenho voce poderia seguir os passos de Jô Soares e publicar romances maravilhosos.
Valeu!

Arthur Miranda disse...

Natale, que prazer ler esse seu texto cheio de mistérios. A gente chega ao final com uma vontade imensa de que ele seja apenas o prefacio de um romance de 500 paginas. Gostosura.

Wilson Natale disse...

SAIDENBERG: Valeu!!!
IGNACIO: Sinhá Chiquinha era uma dessas mulheres cheia de grandezas. Fé, força de vontade, amor ao próximo e amada por todos nós. Realmente era uma SINHÀ!
Outras sinhás que conhecí ficaram pelo interior de São Paulo.Nhá Conceição, de Rio Claro; Siá Madalena, de Martinho Prado, Sinha-velha (Maria das dores), 107 anos de Ribeirão Preto; Siá Luzia, de Casa Branca, etc... Mulheres maravilhosas que nos benziam, nos aconchegavam ao colo. Todas Sinhá com grandeza.
LARÙ: São Paulo é assim, tudo à nossa volta. Para ser descoberto ou desvendado.
ZECA: Valeu! Outras histórias virão, meio insólitas, meio comicas, falando dos fantasmas de Sampa.
SONINHA: Valeu! Aos poucos eu vou costurando vidas aos momentos e acontecimentos de São Paulo. Pois é a vida de cada um que faz a história dessa Metrópole.
CIDA: Valeu! E é muito bom ter você e todos como leitores.
MIGUEL: Um dia eu chego lá!... Pra quê, não sei... Ahahahaaaaaa!
ARTHUR: Valeu! O tema ajuda no desenvolvimento do texto. Que tal você - e todos, claro - começar a escrever suas histórias insólitas?
Abração e obrigado à todos!
Natale

margarida disse...

Natale,lendo seu texto lembrei da minha infância. Ficávamos sentados com a molecada da rua, na esquina onde era minha casa, e cada um tinha um historia pra contar, que a avó ou alguém da família vivenciou. Eram coisas semelhantes as da Sinhá Chiquinha.Inclusive meu pai falava de um tal Jorge que frequentava lá em casa ( um espirito brincalhão), fazendo as panelas baterem dentro do armário da cozinha e o despertador tocar fora da hora marcada.Tínhamos muito medo, mas adorávamos ouvir tais estorias. A sua, Adorei! Do jeito que a Peramezza gosta de dizer. Um grande abraço.

Leonello Tesser (Nelinho) disse...

Natale, obrigado pelo histórico texto, aprendí mais um pouco da memória de nossa cidade, abraços, Nelinho.

Wilson Natale disse...

PERAMEZZA e NELLINO (Nelinho):
Todos nós temos uma ou mais histórias insólitas que um dia nos contara e que vale a pena contar.
A História, os fatos de São Paulo sempre foram a minha paixão.
Sinhá Francisca contou a sua história e São Paulo a História.
Ficou fácil entender como era a São Paulo da época de Sinhá. E a História deu-me também a confirmação dos fatos contados sobre o Prior e sobre a triste rua da Boa Morte.
Um dia eu conto em um texto como eu descobri as muitas São Paulo de todos os tempos.
Valeu pelo comentário de vocês!
Abração,
Natale