quarta-feira, 26 de junho de 2013

Ontem à noite sonhei




Para ouvir "A pequenina cruz do teu rosário" com Carlos Galhardo, clique no play


Texto original, sem edição da moderadora

Desliguei o televisor, fechei a janela, pois o ar frio que entrava por ela já estava me incomodando, meus familiares já tinham ido dormir e tudo estava em silêncio, sob a luz do abajour fechei os olhos e aboletado na poltrona acabei adormecendo e sonhei que estava na Av. Rio Branco tomando uma sopa de legumes no antigo restaurante Palladium, em seguida fui ao Táxi-Dancing Avenida para encontrar meus amigos, no momento quem executava as músicas era o conjunto de Tobias Troisi,  resolvi dançar e convidei uma dama que estava na primeira fileira à esquerda da entrada da pista, saímos dançando e lá no palco o crooner do conjunto cantava uma seleção de boleros...

                        "Garçon amigo apague a luz da minha mesa
                          Que eu não quero que ela note em mim tanta tristeza
                          Traga mais uma garrafa hoje eu vou me embriagar
                          Quero dormir para não ver outro homem em meu lugar...
a música segue e logo o cantor interpreta:
                          "Esta noche quiero vivir todos my suenos
                           Y en tus brazos quiero sentir que soy tu dueno
                           Ai, abrazame, convidame com besos, que junto a ti
                           Quiero dormir mi sueno eterno...
a seleção continúa...
                           "Malvada mi alma has destroçado
                             El amor que te di por otro lo has cambiado
                             Tú précio puedo haberlo pagado
                             Es demasiado tarde, muy caro lo has cobrado...
o cantor sai e entra a crooner cantando:
                             "Se quizer fumar eu fumo
                              Se quizer beber eu bebo
                              Não interessa a ninguém
                              Se o meu passado foi lama
                              Hoje quem me difama
                              Viveu na lama também...
ela segue cantando...
                              "Pintor nascido em mi tierra
                               Con el pincel extranjero
                               Pintor que sigues em rumbo
                               De tantos pintores viejos
                               Aunque la virgen sea blanca
                               Pintame angelitos negros...
retorna o cantor interpretando...
                               "Percal...
                                Te acuerdas del percal?
                                Tenia quinze abriles,
                                Anhelos de sufrir y amar,
                                De ir al centro, triunfar
                                Y olvidar el percal...
 para terminar a seleção de boleros ele canta...
                                "Rosa de maio
                                 É meu desejo
                                 Mandar-te um beijo
                                 Nesta canção
                                 Rosa de maio
                                 Neste poema
                                 Tu és o tema
                                  É a inspiração...
a cena no sonho muda e agora estou no táxi do meu amigo Batanão, é madrugada e no rádio do carro o Galhardo canta....
                                  E sempre que eu a via recordava
                                  Do nosso amor a fantasia louca
                                  Todas as vezes que a pequena cruz beijava
                                  Eu beijava febril a tua boca...
logo muda para um samba que o Alcides Gerardi cantava...
                                 Ô Antonico vou lhe pedir um favor
                                 Que só depende da sua boa vontade
                                 É necessário uma viração pro Nestor
                                 Que está vivendo em grande dificuldade....
a patroa acorda, vem na sala e diz para eu ir dormir na cama, levanto do sofá e vou para o leito feliz e contente por ter tido um sonho tão agitado. 
                                                             



 Leonello Tesser (Nelinho)

quinta-feira, 20 de junho de 2013

MEMÓRIAS FÚNEBRES



Sou partidário da opinião que o homem começa a morrer imediatamente após o seu nascimento. Esta convicção é real e totalmente coerente. Não quero, com ela, afirmar que sabemos quando iremos morrer, apenas sabemos que a morte é inevitável, inexorável, e cada vivente está sujeito a morrer desde o primeiro instante de vida. O grande barato é não termos, absolutamente, nenhuma pista de quando se dará pó fim de nossa vida, a menos que decidamos, em ato extrema covardia ou desespero, darmos fim a ela com nossas próprias mãos.

Ora muito bem, no intuito de melhorar os fluidos e o ambiente, desanuviemos um pouco este texto tétrico, cabe-me o dever de explicar minhas intenções.
Resolvi abordar o temo “morte” e, mais especificamente, dissertar dobre “velórios”.

Atualmente, não sei por que carga d’água evita-se falar ou mesmo mostrar às crianças, sobre mortes e seus rituais.

Já me disseram que se faz assim para salvaguardar os representantes infantis, de assuntos cruéis e que representem perdas inevitáveis. Vamos contar às crianças que aquele avô que lhe enchia de balas e guloseimas, se transformou em mais uma estrelinha no céu, que aquela tia rabugenta, agora está voando entre os planetas com asas feitas de penas de espanador (será que elas ainda sabem o que é um espanador?).

Para se evitar choques, tomamos a decisão de não mostrar os mortos, devidamente encaixotados, mesmo que transformados em jardins floridos, mesmo que os ambientes dessas mostras sejam salas de velórios públicos, bem iluminados e arejados.

Eu, sou remanescente dos anos 40 quando as famílias não tinham tais preocupações, muito menos tinham à sua disposição salas de velórios publicas.

As mortes eram choradas e sentidas dentro dos limites das suas próprias residências. Para tal, as famílias locavam nas funerárias a ESSA (estrado de madeira para apoiar o caixão do defunto) e a armavam, de preferência na sala de jantar, juntamente com os demais acessórios.. Enfileiravam ao redor dela várias cadeiras para que as pessoas pudessem se sentar e enfrentar todo o ritual do velório, que normalmente, atravessava uma noite inteira e parte do dia posterior, até que o féretro fosse conduzido ao cemitério.

Na sala onde aconteceria o velório, as janelas eram cobertas com cortinas pretas ou roxas, debruadas em dourado e também locadas da agencia funerária. As coroas de flores também eram alocadas ao lado do caixão. Os quatro cantos do caixão eram guardados por quatro castiçais enormes e com velas mais enormes ainda, que ardiam durante toda a cerimônia.Tinha também um aparelho elétrico que ligado à tomada ozonizava e desinfetava  o ambiente.

Como parte oficial do velório, as mulheres sentavam-se na sala, confortando-se umas às outras, ora rezando, ora conversando aos sussurros. As crianças corriam e brincavam, desobedecendo  as ordens das mães que queriam vê-las quietas respeitosas (doce ilusão), mas não se impressionavam em demasia com o acontecimento.

Os homens, em grupos, se colocavam à entrada da casa ou no quintal dela, perto porém, da garrafa de cachaça ou do bule de café quentinho, que eram na certeza, as bebidas mais consumidas na ocasião.

A família, além de prantear o morto, era incumbida de preparar os comes e bebes, por que velar o morto carecia de dar trabalho aos dentes dos presentes. Então, durante a madrugada, servia-se uma canja forte, uns lanchinhos de pão com mortadela e ou outro recheio qualquer.

Eu posso afirmar que participei de alguns velórios lá na casa da Rua Augusta. Que eu me lembre, foram os velórios de minha avó, do meu avô e da minha tia e nunca me impressionei pelo ritual.

Aliás, as mulheres de antigamente, quando sabiam que uma pessoa tinha medo de velório recomendava que ficasse de frente aos pés do defunto, segurasse nos pés do dito cujo e fizesse, um pedido para  ele levar seus medos para as profundas dos sete palmas. Diziam que era uma simpatia prá lá de boa. Não posso afirmar a eficiência a  pois nunca precisei fazer uso desse expediente mágico.

Bem, depois dessas divagações todas, eu me pergunto, será que vale a pena toda essa blindagem moderna às crianças de hoje?



Por: Miguel Chammas

terça-feira, 11 de junho de 2013

DE COMO VESTIR UM DEFUNTO, SER AMEAÇADO DE LINCHAMENTO E QUASE PERDER O EMPREGO.



Manhã fria, garoenta, em São Paulo, não lembro datas, dia do mês, nada, mas creio que foi em 1978 ou 79 que se passaram os fatos que de vez em quando vem atazanar meu sossego de aposentado caraminholando minhas lembranças... tem ocasiões que eu rio dos acontecidos, mas não é sempre...
Íamos, eu e meu colega Fernando, começar a desembrulhar o 'pacote' que estava nos esperando no primeiro terço do túnel do HC; a maca com o corpo estava a uns 20 ou 30 metros da grande porta de madeira que dava para a Radiologia...
6:40 de la matina, começo da passagem de plantão na Neurologia. Desço do elevador no 5º andar, vindo do vestiário. Noto que as colegas que trabalharam à noite, quando me veem, sorriem e dão um suspiro de alívio, um grande 'ainda bem' ou um 'graças a Deus'.
"Aí tem coisa", pensei... e tinha!

- Seu Joaquim, tem um 'pacote' no túnel, logo na entrada, que precisa ser vestido e levado para o pessoal da Faculdade; evoluiu prá óbito logo no começo da madrugada...
- Desculpe, Enfermeira, mas porque os colegas do plantão da noite não levaram o corpo? Não tiveram tempo?
- Até que tiveram, mas no meio do caminho chegou um pedido do Palácio dos Bandeirantes... parece que o falecido tinha qualquer coisa a ver com algum figurão. Vai para um velório de bacana não sei onde e o caixão vai sair da Faculdade.Trazer o corpo de volta?... esquece! Naquela mala - apontou - estão as roupas prá vestir o cadáver...
- Já vi tudo... posso levar alguém comigo? Sozinho eu não vou conseguir.
- Leva o Fernando... vocês não estão sempre juntos?

O Fernando era um colega bem mais novo que eu, com seus 20 e poucos anos. De formação era Técnico Agrícola, mas como não conseguia emprego em Getulina, sua cidade natal, veio para São Paulo, onde prestou alguns concursos públicos e terminou por entrar no HC como Atendente; totalmente jejuno em Enfermagem, aproveitou muitíssimo bem o mês de treinamento - cuidados básicos com o paciente acamado e dependente banho de leito, abordagem e alimentação do paciente, condução do paciente em maca ou cadeira de rodas, auxílio na deambulação, um rápido curso para exercer a função de pau para toda obra dentro de um hospital...

- Vamos logo que tem um defunto esperando a gente no túnel...
- Dá um tempo, Juca, acho que vou tomar um café e fumar um cigarro e depois a gente vai...
- 'Num' dá, Fernando... Vamos acabar logo esse parangolé se não vai atrasar tudo, tem os banhos, troca de lençóis, o café dos pacientes, relatórios ...depois você fuma...!

Nos anos 60s e 70s (não sei como está a situação hoje) o túnel que liga o HC à Faculdade na Dr. Arnaldo tinha sua entrada na Radiologia, no 3º andar; uma grande porta de madeira, padrão bem antigo, solene, era a boca da caverna de horrores.

- Pegou as chaves do túnel?
- Peguei... a Enfermeirona-Chefe disse que as meninas que trabalharam à noite não teriam força prá preparar o corpo e...
- 'Tá bom, 'tá bom, 'tá legal... é muito blábláblá... no duro, no duro, a verdade é que sobrou prá gente... e, pelo que eu estou vendo, ainda vamos precisar higienizar o corpo... mão de obra prá c..........!

Começamos a expor o corpo que estava envolto em dois lençóis:
- "Vamos na manha, não sei se fizeram um tamponamento decente... pianinho, pianinho... devagar, devagar... xííí, o defunto já empedrou...vai complicar prá vestir a roupa... vamos dar uma lavadinha nele e ver cumé que fica esse negócio de terno, gravata, meias, sapatos...
- Vai vestir a cueca nele?
- Se tiver cueca prá vestir, a gente veste, uai!...

Afastamos os lençóis e expusemos o rosto:
-IIIh! Fernandão, não fecharam os olhos do morto; ele está com as butucas esbugalhadas...
- Deixa eu ver...
- Não olha nos olhos do morto, não deixa ele te encarar... melhor ir por trás da cabeça e fechar as pálpebras... vai precisar fazer uma forcinha e prender com micropore...
- 'Tá! Mas porque não posso olhar os olhos do defunto?
- Superstição, coisas da Enfermagem... encarar os mortos que estejam com os olhos abertos dá azar... faz você perder a coragem; amarrar as pontas dos lençóis prá 'segurar' vivos os terminais; não pronunciar certas palavras na presença de pacientes; começar os banhos de leito pelos rostos, sacumé, né?... você não precisa acreditar, mas é bom não abusar nem achar graça nesses procedimentos, vai que...!
- Bobagem, Juca!
- Ah é? Então faz um olho no olho com o falecido...
- Eu não...
- Não falei?...

Passada a parte mais fácil dos procedimentos, tratou-se então de vestir o defunto. Sabíamos do complicador que teríamos com o rigor mortis estabelecido; felizmente existe uma técnica para vestir a parte superior de um corpo numa situação igual àquela que se apresentava; essa técnica - ou truque - é executada com certa facilidade por pessoas com um mínimo de experiência; no entanto, da cintura prá baixo é que a porca torce o rabo; normalmente é difícil vestir um corpo em estado de rigidez total e, para complicar tudo, estávamos num subsolo, num túnel estreito, escuro, frio, sombrio, lúgubre, sem lenço, sem documentos e com um cadáver de uns 90 kg, seminu ou semi vestido, tanto faz como tanto fez!
Por não conseguirmos manipular o corpo sobre a maca bastante instável, foi preciso colocar o cadáver em pé para poder vestir a cueca e a calça em seu corpo endurecido; o Fernando, com a mão em seu peito, segurava-o encostado a uma parede enquanto eu, agachado, tentava terminar de vesti-lo...
Aconteceu então abrirem-se as portas do inferno... ou, dizendo melhor, algum alguém conseguiu abrir a porta da Radiologia e, como todo mundo está cansado de saber, a curiosidade matou o rato etc, etc; de repente umas 15 pessoas começaram a caminhar túnel adentro, conversando, fazendo piadas e rindo até darem de cara com a cena absurda formada por dois homens e um cadáver! Gritos, espanto, caminho de volta aos berros e na correria, burburinho, choro, comentários em todos os níveis, vozes, altercações, chamem os seguranças...!...

Voei até a porta escancarada e a fechei com força; dei duas voltas da chave na fechadura e fiz uma checagem com a maçaneta; a porta se abriu; fechadura quebrada. Fora assim que os falsos espeleólogos curiosos conseguiram entrar no túnel... as chaves só estavam funcionando pelo lado de fora...
Terminamos rapidamente nossa tarefa e saimos de volta para o ambulatório da Radiologia onde, evidentemente, não fomos recebidos com aplausos. Quase podíamos sentir aqueles dedos, quase físicos, nos apontando: "são aqueles lá!"... e aquele elevador que não chegava... "vão acabar linchando a gente"!
Voltamos para a clínica prontos para encarar uma demissão por justa causa, na melhor das hipóteses. Ao entrarmos no corredor da Neuro vimos que o rolo estava armado; a própria diretora de Enfermagem do HC, a nossa chefe e as Enfermeiras encarregadas estavam nos esperando, algumas delas com um sorriso de vírgula e um esgar sádico na face..."É hoje que o couro come", pensei; as mãos do Fernando tremiam...
No entanto, tudo acabou bem; conseguimos explicar os problemas da fechadura, das pessoas que, por curiosidade abriram a porta e entraram no túnel, o vestir o defunto em pé...
- É, 'seu' Joaquim, vocês deveriam ter checado se a porta estava fechada, realmente...
- Falha nossa, Enfermeira, reconheço... mas, se a Manutenção tinha conhecimento do problema, podiam pelo menos ter colocado uma tramela na porta...
- Tramela?... Faz-me rir...

***************************************************************************
Um comentário final: Hoje em dia um acontecimento desse naipe seria inadmissível; funcionários não pertencentes ao corpo de Enfermagem são treinados para executar técnicas de preparação de óbitos e as próprias funerárias tem pessoal em suas dependências para vestir e maquiar os mortos sob seus cuidados... não podemos esquecer que o que foi narrado aconteceu 40 ou quase 50 anos passados... eram outros tempos e outros procedimentos...



P/ Joaquim Ignacio