Francisca – a Sinhá Chiquinha - era
neta de africanos que eram propriedade dos Junqueira, ricos lavradores do Café
que, com a Abolição, a família ficou na fazenda, uns como assalariados, outros,
os mais idosos, como agregados. Francisca casou-se aos 15 anos – “Com a bênção
do padre, graças a Deus”! Por um lance do Destino, Francisca e o marido
passaram para as terras dos Prado. Fixaram-se na Fazenda São Martinho. Moravam
na colônia, perto dos meus avós. Ela e minha avó, pura empatia uma pela outra,
desde a primeira vez. E nos anos que se seguiram vovó alfabetizou Francisca e
ensinou-lhe todo o tipo de prenda doméstica européia. E Francisca que era
orgulhosa, que tinha postura de dama e que articulava bem as palavras,
tornou-se mais sofisticada. Daí viera-lhe o apelido de Sinhá. Mais uma vez,
quis o Destino que Sinhá Chiquinha e o marido, no fim dos anos 10, viessem para
São Paulo. E Sinhá Francisca continuava morando na Rua da Boa-Morte (hoje, Rua
do Carmo) – no Bairro do Carmo – quando os meus avós vieram para São Paulo, em
1930. E a amizade que seguia por cartas transformara-se em visitas semanais...
Adorávamos a visita de Sinhá Chiquinha!
Além do delicioso bolo de fubá cascudo que ela nos trazia, ela era uma boa
“contadeira” de histórias. Contava-nos histórias de fantasmas que ela, jurando
por todos os santos, vira com os próprios olhos! Falava-nos dos escravos mortos
que vagavam pelas terras dos Junqueira; do fantasma de um menino negro que
aparecia junto ao monjolo, prenunciando a morte; contava sobre as estranhas
luzes que dançavam sobre as sepulturas dos escravos; enchia-nos de medo falando
sobre o pesado sino de alerta da sede da fazenda que, tarde da noite, tocava sozinho
“sem que mãos humanas o tocasse”.
Das histórias de Sinhá, a que mais me
impressionou foi a dos fatos estranhos que aconteciam na Rua da Boa-Morte...
Em São Paulo, Sinhá Francisca, mulher
nascida e criada no campo, não gostou muito da cidade. Todo aquele casario
adensado em vielas estreitas, quarteirões arrasados por demolições e aquelas
casas construídas uma em cima da outra, buscando o céu... Foi morar à Rua da
Boa-Morte, no Carmo (hoje, distrito da Sé).
Desde a primeira vez, não gostou da
rua. Havia nela algo que lhe dava arrepios. À noite, tinha medo de olhar pela
janela.
A janela do seu quarto dava para a rua.
Às vezes, ela acordava tarde da noite, ouvindo, “não com os ouvidos”, sabia,
sons estranhos, vozes em lamento. Sinhá Chiquinha então, agarrava-se ao rosário
e rezava o Salve Rainha... Tudo se acalmava e ela voltava a dormir.
Mesmo de dia, a Rua da Boa-Morte era
triste. Nela, parecia que a neblina nunca se dissipava. Uma neblina além da
visão dos olhos.
Passa o tempo e “coisas do outro mundo”
começaram a acontecer...
Cumprindo o ritual de rezar o terço em
sete igrejas, lá estava Sinhá Francisca na Igreja do Carmo (igreja que não mais
existe e que, junto com o convento foi demolida para dar lugar à Secretaria da
Fazenda), concentrada em desfiar o rosário, quando algo lhe chamou a atenção.
Sentindo um frio intenso, incomodada, abriu os olhos e viu passar junto a si um
padre que seguiu em direção ao altar-mor e... Desapareceu! Apavorada,
agarrou-se ao rosário e, embora a vontade de sair de lá fosse muito forte,
mulher de fé que era não podia quebrar seu compromisso com Deus. Acalmou-se e
reiniciou o terço.
Dias depois, Sinhá Chiquinha foi
desfiar o rosário na Igreja da Boa-Morte. Estranhou que àquela hora da tarde a
igreja estivesse tão cheia. Pelos lamentos de dor e tristeza ela concluiu que
deveria ser uma missa de mês, ou de sétimo dia... Mas, onde estava o padre?...
Fechou os olhos e concentrou-se nas orações. Para isso ela estava lá!
Acabara de rezar as Ave Maria e, quando
ia iniciar o Pai Nosso, desconcentrou-se. Percebeu que o templo estava
assustadoramente silencioso. E frio demais, coisa que antes não estava. Abriu
os olhos e viu a igreja vazia. Era impossível toda aquela gente que estava lá
sair sem fazer ruído. Lembrou-se do fato acontecido no Carmo e assustou-se.
Desta vez, um tanto desequilibrada, guardou o rosário na bolsa, levantou-se e
saiu a toda pressa...
Avessa a abrir as janelas que dava para
a rua quando anoitecia por duas vezes Sinhá Chiquinha foi surpreendida pelas
visões fantasmagóricas.
Havia já alguns dias que chovia forte
em São Paulo. Naquela noite os trovões faziam estremecer as casas, relâmpagos
intermitentes iluminavam o céu e raios riscavam a noite. Então, um estrondo
tremendo deu início à borrasca. A chuva transformara-se em violenta tempestade.
Pensando no marido, que trabalhava no Brás, temendo mais uma inundação do
Tamanduateí ela, esquecida do medo, abriu a janela para ver o chuvaréu.
Congelou e engoliu o grito de pavor que quase lhe escapa. Diante dela, passava
o mesmo padre que vira no Carmo. Paralisada, seguiu com os olhos aquela figura
fantasmagórica até que ela desaparecesse pelo Beco do Carmo (hoje, Rua dos
Carmelitas)...
Meses depois, Sinhá Chica, acordada
pelos rumores e os barulhos que vinham da rua àquela hora da madrugada,
irritadíssima abriu a janela do quarto. O que viu a fez perder os movimentos e
a fala. Na rua passava um estranho cortejo de homens e mulheres, vestidos à
moda antiga que lamentavam, choravam e rezavam. À frente do grupo, um homem com
as mãos amarradas, ladeado por dois soldados (milicianos). Com os olhos
arregalados ela foi percebendo que aquelas figuras, até então sólidas,
começaram a diluir-se em pleno ar. Rápido não havia mais ninguém na rua. Sinhá
Chiquinha arriou, caiu ao chão. Desmaiou de tanto medo!...
Sinhá dava-se muito bem com as
vizinhas. Mas nunca fora de falar-lhes dos próprios sentimentos ou outras
particularidades de sua vida. Mas, dois dias depois de desmaiar de tanto
terror, fragilizada e entre lágrimas, abriu-se com elas. E o seu espanto foi
grande, quando soube que muitas das vizinhas passaram pelo mesmo susto e terror.
O mesmo pelo qual passaram os moradores antigos da Boa Morte. O assombramento
da rua era comum a todas as épocas.
Ficou sabendo a história do Prior do
Carmo, homem violento e rude que, em 1859 foi assassinado, estrangulado por
dois escravos que não aguentaram mais o seu maltrato. Desde então, ele vaga
pela igreja, pela rua e desaparece no beco.
Soube também que a Rua da Boa-Morte era
a “via crucis” dos sentenciados à morte que demandavam ao Morro da Forca. Pela
rua seguiam, em procissão, acompanhando o sentenciado, parentes e amigos. Iam
até a Igreja da Boa-Morte, onde o sentenciado recebia a extrema unção. Na
igreja permaneciam os parentes e amigos a lamentar e orar, enquanto o
sentenciado seguia pela Rua Tabatinquera, rumo ao Morro da Forca (Hoje, Praça
da Liberdade).
Aliviada, Sinhá Chiquinha, piedosa que
era, decidiu rezar o terço das almas, todas as sextas-feiras, na Capela dos
Enforcados. Funcionou. Nunca mais foi perturbada... Mesmo assim, enquanto morou
lá, na Boa-Morte, recusava-se a abrir as janelas, quando anoitecia.
Por Wilson Natale