Nós sempre vivemos rodeados pela sabedoria popular e pelas frases prontas e feitas.
Nos longínquos 1953/1954, meu universo era delimitado pelas ruas Guaicurus, Vespasiano, Faustolo e Caio Graco, e nesse universo habitavam todos os heróis em carne e osso e de papel.
Meu pai tinha um restaurante em frente à Rua do Cortume e essa rua era cheia de mistérios, pois terminava (para mim) na linha do trem e tinha muito terreno vazio e muito mato.
Meu amigo Décio e eu éramos os maiores do mundo e ele, por ser mais velho (tinha 5 anos mais que eu), sempre comandava as brincadeiras, seja de teatro, futebol ou brincadeiras mais caseiras como jogar ludo real, naqueles tabuleiros de 4 jogos, trilha, etc.
Quando eu me via sozinho, porém, tinha aventuras especiais. Uma delas era comprar gibis. Falei dos dois heróis em carne e osso, falo agora daqueles que devorava sem um instante de folga.
Capitão Marvel, Tio Patinhas e seu sobrinho Donald, Cavaleiro Negro, Gene Autry, Roy Rogers, Flecha Ligeira, Don Chicote, Luluzinha, Bolinha, entre tantos.
Minha aventura era a seguinte: De manhã, pedia para a minha mãe me dar dinheiro para comprar um gibi; de tarde, era meu pai quem me dava dinheiro; às vezes eu surrupiava uma gorjeta no restaurante e comprava outro.
Para completar, na frente do restaurante tinha um espaço disponível e o jornaleiro pedia para meu pai deixar que ele expusesse as revistas e jornais. Isso era um motivo para que eu pedisse para que ele me deixasse ler alguma coisa. Resumindo, de três a quatro gibis eu lia todo dia. O grande suspense da história era que meu pai não deveria saber que minha mãe me dava dinheiro, e vice versa.
Um belo dia, o vice versa se deu e fui pego com a boca na botija, isto é, sentado na banca lendo mais um gibi.
A bronca foi tão marcante que o Superman que eu lia voou longe, mesmo com ele ainda estar vestido de Clark Kent e, no triângulo, o jornaleiro se explicando, minha mãe tentando apaziguar e meu pai espumando... A farsa foi toda descoberta e eu, como se dizia na época, “saí de fininho porque não estava agradando”.
Alguns anos depois, já mais assentado e lendo menos gibi, resolvi relembrar tempos gloriosos e transformei minha bicicleta em fogoso corcel, meu jaleco azul de entregador em uma garbosa armadura e a Rua Groenlândia no cenário especial para reviver meu tempo de herói da Távola Redonda. Aposentou-se o Don Chicote e surgiu o Ivanhoé.
Numa manhã especial, com a lista de entregas de leite pronta, bicicleta carregada de litros de leite - levava 14 ou 16 por vez - pronto para sair, vi a menina que me enfeitiçava brincando na calçada e não deu outra. Herói arrebatador, aprumei meu elmo, que nada mais era que um boné, estiquei o jaleco e me imaginei pedalando ao lado dela, todo imponente, enfrentando todos os infiéis inimigos do rei, mas o impensável aconteceu.
Desatento, não percebi que a bicicleta, desequilibrada por tanto peso na traseira, deu um pinote para traz e num instante os 16 litros de leite misturaram–se no asfalto em cacos e líquido.
Não sabia se me lamentava pela menina que me olhava ou pelo meu pai que se aproximava.
Está bem, diriam tantos que não se deve chorar sobre o leite derramado. Mas, eu sabia que iria chorar sobre o leite derramado. E como chorei, pelo leite derramado!
Tantos heróis passaram pela minha cabeça e eu acrescentei Ivanhoé a esta galeria.
Na semana passada, lembrei de mais um, desses quase esquecidos personagens. Fui até a OAB entregar uma documentação e a atendente, muito solícita, depois de receber toda a papelada, pediu que me dirigisse ao caixa, indicando a senha preferencial.
Tal como Flash Gordon, que está sempre viajando e, especialmente eu, no mundo da Lua, pequei a senha normal e, percebendo o equívoco, imediatamente puxei outra que era a preferencial.
Como o local é de respeito e o segurança estava atento a tudo que acontecia, sorrateiramente coloquei a primeira senha no bolso mantendo a preferencial na minha mão e me dirigi ao caixa.
Esperei por uns trinta segundos e a caixa chamando o número seguinte enquanto esperava o meu, preferencial.
A moça que me atendeu, vendo-me parado, esperando, retornou e começou a discutir com a caixa e esta lhe dizia que não me chamava por estar já chamando o 47 e que logo seria a minha vez. Passada a discussão, um pouco acalorada, confesso, a caixa, meio contrariada, me atendeu, conferiu, carimbou, recebeu, deu o troco e finalmente me vi na rua, em direção à Praça da Sé.

Meio ressabiado, disfarçadamente, pus a mão no bolso e confirmei que o 47 estava comigo, no meu bolso.
Faltava mais este herói à minha lista, como se fosse o Mandrake, tinha conseguido a façanha de me deslocar e ficar atrás de mim mesmo na fila.
Heróis vão e vem... Ditados populares são ditos e muitos esquecidos. No meio da praça, amassando aquela famigerada senha e depois a jogando no lix, veio em mim o derradeiro mote:
Quem é vivo sempre aparece, mas... Às vezes, é melhor se fingir de morto.
Por José Carlos Munhoz Navarro
Zé, eu como o Lothar ou o velho indio Tonto, fiquei embasbacado com tua narrativa.
ResponderExcluirVocê fez um balaio de gatos, derramou o leite, namorou a Silvia e levou uns petelecos, tudo no mesmo texto.
Maravilhoso, o poder de costurarpalavras e idéias.
eu só posso dizer: Não para, não para, não para......
Sempre muito bom ler suas histórias.
ResponderExcluirabraço grande para você e para Silvia
Navarro. Você com essa sua estória enviaram-me de volta ao passado e eu me senti em frente a uma velha banca de jornal admirando a exposição de gibis, babando sem dinheiro para comprá-los, vendo desfilar na minha frente O almaque do Globo Juvenil mensal, onde a Família Marvel enfrenta a Família Silvana (Hi,Hi,Hi) e ainda desfilam, O Príncipe (Namor) Submarino, Capitão America, Tocha Humana, Dom Chicote, Flexa Ligeira, Hapolong Cassidy, Nyoka rainha das selvas, Fantasma e o seu capeto, Zorro e tantos outros, e você um grande Mandraque das palavras hipnotizando minha mente e fazendo num abrir e fechar de olhos tudo isso materializar-se em minha frente. Por essa sua tão bela narrativa que fez até o Miguel mostrar o seu lado “corintiano” e gritar como a fiel o faz nos jogos do Timão: Não Para, Não Para, Não Para. Eu só posso dizer: Navarro Pare sim! Pare de demorar em escrever. Parabéns .
ResponderExcluirPois é, Navarro: "Não há mal que sempre dure e nem bem que nunca se acabe..." Ou vice-versa (risos).
ResponderExcluirEntre os tantos Gibís, por você citado e lidos por mim, acrescento "Os Sobrinhos do Capitão", o "Terror Negro", "Contos de Terror" e o "Dick Tracy".
Lembrei também, não sei se acontecia com você, que o meu jornaleiro tinha uma pilha de Gibís velhos que se podia comprar a preços mais baratos, ou trocá-los pelos que a gente tinha. A troca era sempre na base do dois por um.
E o seu texto prova que "A mentira tem pernas Curtas", que "Tanto o cântaro vai à fonte que, um dia se quebra"... E que, "Nada como um dia após o outro..."
Adorei o seu texto! Tão hilário fazendo-nos lembrar dos tempos em que TODO NÓS achávamos que éramos espertos.
Abração,
Natale
Zé Carlos,
ResponderExcluiro que mais poderia acrescentar, que já não tenha sido dito acima pelo Miguel, pelo Arthur e pelo Nathale? Eu também lia todos os gibis mencionados, me sentia na pele dos heróis e sempre querendo salvar a mocinha e também comprava, como lembrou o Nathale, gibis usados por preços menores. A única diferença é que eu arranjei um expediente para ganhar uns trocados e poder comprar mais gibis: todas as 4ªs feiras, eu espalhava os meus gibis sobre uma folha de jornal, na feira e vendia, conforme o estado, por preços que iam até quase o preço de capa!
Bons tempos aqueles! Gostosas recordações!
Abraço.
Excelente narração, Zé Carlos, vibrei com o tombo da bicicleta e a lambança de leite no asfalto. Não é maldade minha, não. Imagine!!!! achei espetacular o sacrifício, em nome da conquista irrealisável, que ficou na intenção, na imaginação tão forte que até hoje vc lembra e conta pra nós, com requintes de vanglória, imaculando o negro asfalto com a mancha irremovível da brancura do pecado.
ResponderExcluirAgora, quando vc fala de GIBI, use sempre as maiúsculas, por favor. GIBI é coisa sagrada, iniciação de toda minha vida de aventuras. Vc não lembrou do Principe Submarino, do Tocha Humana, do Titan, do Drago e Roy, do Fantasma Voador, do Barney Baxter, do Tereré, do Principe Valente, do Flash Gordon do..... chega, quero te dizer que tenho a coleção de republicações de 1970, destes herois. Ahhh, ia esquecendo do Brucutu, Pinduca, Pafúncio e Marocas eeeee chega, pô!
Parabéns, Navarro.
Laruccia
Olá,José Carlos!
ResponderExcluirBacana sua aventura de adolescente apaixonado e suas manobras parapoder ler a literatura que mais gostava.
Eu também gostava de ler gibis e gosto até hoje.
Valeu!
Obrigada.
Muita paz!
Divertida e bela narrativa. Parabéns, José Carlos!
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